Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Planejamento em saúde na Amazônia das águas
Michele ROCHA EL KADRI, Carlos Machado

Última alteração: 2022-01-24

Resumo


APRESENTAÇÃO: Este artigo descreve como características do território de várzea amazônica impactam na organização do sistema de saúde local. O reconhecimento dessas condições é questão central para o planejamento e organização das políticas públicas que promovam cidadania e proteção social às comunidades amazônicas. Elegemos a região conhecida como Triângulo por ocupar uma posição central na Amazônia Ocidental na confluência de três grandes rios da Bacia Amazônica (Jutaí, Japurá e Solimões-Amazonas), tendo a cidade de Tefé como polo dinamizador regional.

DESCRIÇÃO: Para compreender o uso do território relacionando-o com o acesso à saúde foi necessária uma combinação de estratégias qualitativa-quantitativa. Para mapeamento dos fluxos intermunicipais, foi utilizado na viagem de campo o aplicativo GPS para trilha Wikiloc, permitindo rastrear a distância percorrida, rota, velocidade e tempo do deslocamento, tipo do transporte e elevação do terreno. Foram conduzidas também entrevistas com 18 gestores em 6 municípios da região dentre secretários de saúde, diretores hospitalares, coordenadores da atenção básica e da vigilância em saúde. As entrevistas gravadas em áudio foram transcritas e submetidas a análise de conteúdo temática com ajuda do software MaxQDA.

RESULTADOS: A “ruralidade” do camponês ribeirinho amazônico que utiliza a terra-solo e a terra-água é distinta da “ruralidade” do camponês produtor exclusivamente da terra-solo. Essa “territorialidade anfíbia” se materializa na construção de habitações, sistemas de engenharia de agricultura ou pesca e, subjetivamente, na percepção de um tempo não linear e de uma vida que se organiza em profunda relação com o ecossistema na incessante interação entre água, floresta e terra.

Por causa da sazonalidade fluvial, alguns ribeirinhos optam por transferir residência para terra firme durante enchente, mas não abandonam as atividades agrícolas na várzea. Aqueles que optam por permanecer em terras submersas, constroem casas em palafitas, flutuantes ou suspendem assoalho. Palafitas, edificações de madeira construídas sobre estacas, deixam habitação segura do alagamento do rio. Outra solução é casa de dois andares na qual a família durante a cheia abandona o térreo e passa a residir no andar superior. Os flutuantes são construções sobre gigantescas toras de madeiras que permite a casa flutuar acima do nível da água, acompanhando o subir e descer do rio. Outra adaptação é a elevação do assoalho com tábuas de madeira que permite circulação dentro da casa, suspender os móveis e elevar poleiros e currais para abrigo de animais e de pequenos cultivos. Contudo, o adequado saneamento das residências permanece sendo um fator de vulnerabilização dessas populações. Apesar da abundância de águas, a população enfrenta problemas para adequada captação e destinação de esgoto e resíduos sólidos. Doenças diarreicas nas unidades de saúde são cíclicos e obedecem a sazonalidade do rio, sendo frequentes quando o rio começa a encher e novamente quando nível da água está baixo.

Quanto ao acesso aos serviços de saúde, devido a extensão territorial e a dispersão dos objetos técnicos, não raro, as pessoas moram num município, mas utilizam serviço de outro. Por isso, é comum que as prefeituras custeiem Casas de Apoio para acompanhamento em situações de saúde de sua população em outro município que disponha de mais recursos. As políticas públicas, como por exemplo a regionalização, necessitam acomodar a dinâmica da vida das pessoas que não está limitada as fronteiras cartográficas do município. Pessoas acessam os equipamentos de saúde onde lhes é mais fácil, cômodo e conveniente.

Nos municípios pesquisados, todas as sedes municipais, comunidades e maiores aldeias indígenas encontram-se à margem de rios e lagos. O acesso à assistência especializada ou rede de urgência em Tefé é feito por via fluvial. A depender da gravidade no quadro clínico, excepcionalmente a SES-AM é acionada e disponibiliza a UTI área para Manaus. O trajeto percorrido por via fluvial é muito distinto daquele feito por via terrestre: é variável ao curso do leito do rio principal de acordo com período de vazante ou cheia e as condições naturais o que consequentemente impacta significativamente no tempo da viagem. Devido ao desnível do rio, a velocidade média chega a ser até 18km/h maior na descida do que subida (trecho Tefé-Jutaí-Tefé). Isso significa a diferença de tempo entre 60 e 90 minutos no trajeto de ida ou volta. Considerando um quadro de urgência, essa variação é vital para decisão da melhor conduta terapêutica adotar.

Essas medições foram feitas considerando embarcação com motor acima 500HP. Mais potência significa custo de transporte mais elevado que embarcação comum (trecho mais caro Tefé-Japurá R$367,00). Se o paciente está acamado, mas com quadro clínico estável, os municípios costumam custear esse transporte mais rápido. Em caso de consultas ambulatoriais ou exames especializados, a viagem é custeada em embarcações comuns com tempo de viagem cerca de 3x superior, porém a menor custo.

O “pulso” das águas interfere nos modos de produzir o acesso. Os gestores destacaram que as viagens para atendimento das populações ribeirinhas são planejadas singularmente pois os caminhos se modificam e as distancias também se alteram de acordo com a quantidade de água e curso fluvial daquele ano.

“Na cheia, tem comunidade que o gasto de combustível numa remoção são 170 litros pra ‘vim’ e 170 litros pra retornar. Na seca não. Por ser mais difícil, é a lama que eles têm que andar, regiões que eles se deslocam por 1h e meia até chegar num rio andando pra pegar canoinha e vir em caminhos estreitos, por ser mais difícil a gente percebe que eles procuram menos.” (gestor em Tefé)

O relato evidencia que a locomoção é afetada pela sazonalidade e isso tem impacto real e direto nos custos e tempo na prestação da assistência.  Na seca, embora a demanda diminua, a distância a percorrer aumenta e consequentemente o tempo e custo da viagem. O isolamento das casas é maior, pois é necessário caminhar longas distâncias até acesso a um porto com nível perene de água. Na cheia, a possibilidade de uso de atalhos por furos d´água diminui o tempo de deslocamento, tornando a viagem indiscutivelmente mais agradável e confortável, o que em caso de urgências em saúde não é irrelevante!

A iniquidade territorial tem sido grande desafio para efetivação da integralidade do SUS. Pelo nível de especialidade técnica, há procedimentos e ações que exigem escala para baratear custo e desse modo garantir acesso para mais pessoas. As entrevistas evidenciaram que a sazonalidade do território implica mudanças nas condições sanitárias e, por consequência, exige uma organização do SUS baseada numa materialidade móvel, que segue o fluxo das águas. O planejamento das ações de saúde no território líquido não deve considerar apenas os equipamentos sanitários já existentes, mas também a disponibilidade de meios de transporte (fluvial), a grande extensão dos municípios e, ainda, a dispersão da população no espaço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Como na Amazônia Ocidental permanecem os desafios para ampliação da oferta de infraestrutura para expansão da conectividade informacional, os fluxos ainda acontecem fortemente a partir de uma base material, de modo que não se pode ignorar as distâncias físicas na construção do espaço. Neste trabalho, apresentamos alguns elementos que nos fazem compreender que a organização de serviços públicos nessa região exige uma outra racionalidade não baseada em fluxos terrestres nem tampouco objetos fixos no território. Quanto mais dispormos de equipamentos e processos de saúde com mobilidade, mais o SUS terá capacidade para responder as demandas da população ribeirinha.