Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2022-01-26
Resumo
Apresentação: Documentários são produções apresentadas na forma de narrativas registradas sob um ponto de vista para retratarem a realidade e mobilizarem o imaginário do espectador, ajudando na compreensão da vida e da conjuntura social. Objetivos: Refletir sobre a dependência tecnológica do complexo farmacêutico transnacional, que tem o trabalho em saúde, e os sistemas de saúde, através do documentário “Collective”. Metodologia: A produção textual tem formato de ensaio, cujo fio condutor são as metáforas e ideias despertadas pelo documentário, colocadas em diálogo com conceitos do campo da saúde coletiva. Este relato foi construído a partir da reflexão compartilhada pelos autores e ampliada com a contribuição do segundo autor. Desenvolvimento: “Collective” é um documentário romeno dirigido por Alexander Nanau, em 2019-2020. O título referencia-se à boate homônima localizada em Bucareste (Romênia) que, em 30 de outubro/2015, sofreu um incêndio durante um show, deixando 27 mortos e 180 feridos. Nos meses seguintes, foi registrada a morte de 37 sobreviventes do incêndio, que não pareciam mais correr risco de morte em diversos hospitais da capital. A produção acompanha um grupo de repórteres do jornal romeno “Gazeta Sporturilor” que investiga um sistema de corrupção que comprometia a administração pública e as unidades hospitalares. A investigação revela que uma indústria farmacêutica, a Hexi Pharma - no caso do contexto descrito no documentário -, adulterava produtos antes de vendê-los aos diversos hospitais da Romênia, com os quais tinha contrato. Os produtos eram desinfetantes e deveriam servir para esterilizar as dependências das unidades hospitalares e reduzir as possibilidades de infecções no interior dos serviços, porém, sofriam diluição em quantidade elevada, alterando a concentração e fazendo com que o produto perdesse sua funcionalidade. As pessoas hospitalizadas, portanto, estavam sendo vítimas de infecções hospitalares causadas por diversas bactérias devido ao descontrole microbiológico. Após a divulgação das primeiras reportagens nos jornais impressos e na TV, a população se sente encorajada e vai em massa às ruas para protestar contra as autoridades corruptas. À época, o protesto em escala nacional forçou o ministro da saúde a renunciar. O sucessor, Vlad Voiculescu, era um ativista da saúde. Ele permitiu o grupo de repórteres filmar o que acontecia atrás das portas fechadas dos hospitais. A denúncia em questão, cujo ponto de partida foi o incêndio na boate, é extremamente oportuna, pois propõe reflexões a fim de que a “vida real”, vista por meio do documentário, possa ser analisada e melhor compreendida. Impactos: O documentário aborda uma situação de aproximadamente cinco anos atrás, mas tem uma conversa com o Brasil de 2020-2021, sobretudo no que tange o enfrentamento a COVID-19. O ponto de coesão das histórias é a negligência e a banalização do cuidado, a saúde mercantilizada (não apenas pela indústria farmacêutica, mas também pelo interesse político e econômico de outros setores, inclusive o próprio governo) e, também, o impacto de catástrofes na sociedade e no sistema de saúde. Em relação ao segundo item, nos últimos anos, o Brasil sofreu diversas catástrofes, quase todas com um componente forte de negligência governamental. Para citar brevemente, a tragédia ambiental em Miraí, Mariana e Brumadinho (cidades de Minas Gerais); o incêndio na Boate Kiss (Rio Grande do Sul), última das situações em que a presença forte do governo criou coesão nos sistemas locorregionais e serviços para o cuidado individual e coletivo às pessoas; o colapso do sistema de saúde no estado do Amazonas durante a pandemia de COVID-19, cuja ação do governo federal, ao contrário, acentuou o caos e a dependência tecnológica; e a pandemia de COVID-19, propriamente dita. O conjunto de exemplos tem em comum com o enredo do documentário a produção de sofrimentos, adoecimentos, mortes e suspeitas de subregistro, além do ponto de encontro entre o que temos denominado de complexo industrial da saúde, na categoria teórica original produzida por Hésio Cordeiro (complexo produtivo econômico-industrial da saúde, em denominações recentes) e a natureza da saúde como campo de ação no contexto capitalista. Há consenso, seja de economistas liberais ou progressistas, que a saúde não é um mercado ideal e, ao contrário, imperfeito, uma vez que o poder de interação dos atores é muito díspar, requerendo a ação regulatória do poder público, na representação do interesse social. Entretanto, a capacidade do poder público de vocalizar o interesse social, como consta na Constituição, é dependente dos atores e das coalisões que compõem o governo. No Brasil, a tecnoburocracia do Estado é frágil e, em muitos momentos da história, tem se submetido à ação regulatória dos governos, mesmo quando esses não demonstram compromisso com o interesse público, como no caso brasileiro atual. Nas políticas de saúde brasileiras desde a implementação do SUS, está registrada a regulação social da incorporação tecnológica, em contextos de ação direta da sociedade, como na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC), que tem sido alvo de ataques do governo federal, que nos três anos iniciais, já esvaziou diversos fóruns de participação nas políticas públicas. O contexto brasileiro está próximo à crise relatada no documentário, onde a ação governamental não desenvolve iniciativas regulatórias do complexo produtivo voltadas ao interesse público. A crise atual da CONITEC é, inclusive, o interesse do governo na absorção de medicamentos comprovadamente ineficazes para a COVID-19, em oposição ao interesse público. Mas o documentário também nos inspira a pensar em um salto civilizatório e sanitário na relação entre o interesse público e a regulação do complexo produtivo da saúde: a participação social. Para tanto, o trabalho no interior dos sistemas e serviços de saúde precisa atuar como trabalho técnico e como trabalho de relevância pública, como é reconhecido na Constituição Brasileira (1988). A educação em saúde, voltada para fortalecer a população e os modos de produção da saúde de cada território, e a educação permanente em saúde, como dispositivo para desenvolver o trabalho, são fundamentais. O uso inadequado de medicamentos, insumos e tecnologias responde aos interesses do complexo produtivo da saúde, não da produção de saúde das pessoas e coletividades. Conclusão: “Colletive” é um documentário que mostra uma face global da privatização da saúde, que é a força regulatória do complexo industrial-farmacêutico sobre os sistemas e serviços de saúde, assim como sua influência em produzir imaginários no cotidiano do trabalho. O documentário mostra a negligência e o predomínio do interesse de uma farmacêutica no desdobramento de uma crise sanitária, o incêndio em uma boate, que produziu mortes sequenciais. Mostra também a omissão do poder público, que não desenvolveu ações regulatórias em favor do interesse público. Além disso, mostra também a potência da ação da sociedade civil que, diante da omissão e negligência, foi às ruas e produziu uma tensão forte, que renovou o governo. As crises sanitárias e a morte prevenível movem a população para a vocalização do interesse público. Mais do que dispositivo de pensamento, o documentário ampliou a esperança que, como sociedade, conseguiremos vencer a pandemia, a crise civilizatória que ela tornou visível e a necropolítica. Ações de educação em saúde, no cotidiano dos serviços e com ações lúdicas e artísticas, como o debate sobre o documentário romeno, formando alianças do trabalho com a população, parecem ser uma forma de ativar o “jeitinho brasileiro” para a defesa da vida, mais do que as redes sociais o tem ativado para a bestial autoimolação.