Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
Tamanho da fonte: 
A humanização como estratégia de cuidado à pessoa com agravos em saúde mental: relato de experiência
Milleny Tosatti Aleixo, Marina Tosatti Aleixo, Clayver Viktor Moreira de Azevedo, Vanessa de Souza Amaral, Alvino de Souza Amaral, Deíse Moura de Oliveira

Última alteração: 2022-01-27

Resumo


Apresentação: No âmbito da saúde coletiva e sob sua compreensão acerca de determinantes que afetam as condições de vida das pessoas, invariavelmente os profissionais estarão lidando com situações de múltiplas complexidades, sendo crucial um olhar diferenciado sobre elas. Quando a demanda de saúde apresentada perpassa por agravamentos na condição mental e emocional dos sujeitos, mais delicado esse trabalho se torna, no sentido de que as reais necessidades dos envolvidos não sejam invisibilizadas por parte dos serviços de saúde. Nesse contexto, as tecnologias leves são essenciais em todas as abordagens. Assim, práticas pautadas na humanização e direcionadas a acolher o indivíduo são primordiais. Não obstante, existem percalços que transpassam essas intenções de cuidado. Dentre eles o fato de que, nem sempre, as tecnologias leves são creditadas por parte de profissionais que trabalham na rede de saúde, como   as unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF) e Centros de Referência em Assistência Social (CRAS). Nesses casos, a descrença na humanização como potência cuidadora pode prejudicar a qualidade da assistência prestada, devido à fragilidade que passa a cercear os vínculos construídos e à maior resistência entre paciente, família e profissional. Diante do exposto, o presente trabalho tem como objetivo relatar uma experiência que evidencia a humanização como estratégia de cuidado a um paciente com agravos em saúde mental, assim como os desafios atrelados a essa vivência. Desenvolvimento: A experiência ora relatada traz o cuidado realizado junto a um paciente com adoecimento mental adscrito a uma Unidade de Saúde da Família do Vale do Aço de Minas Gerais, no ano de 2019, sendo vivenciada por uma enfermeira recém-formada, atuante na referida unidade.   O senhor “A”, de 64 anos na época, possuía história patológica pregressa de hipertensão arterial sistêmica, tabagismo e esquizofrenia, tendo sendo esta diagnosticada aos seus 21 anos. A ESF cenário para as intervenções prestadas e o CRAS existente na localidade eram compostos por profissionais que, em sua maioria, exerciam suas atividades pautados no paradigma flexneriano, e eram frequentes as intervenções realizadas a fim de internarem os pacientes com patologias psiquiátricas da região em hospitais psiquiátricos. As próprias famílias apoiavam ou solicitavam essa conduta, tendo em vista a dificuldade de lidarem com os entes adoecidos e à falta de apoio para que os casos fossem conduzidos de maneiras diferentes. O paciente “A” residia sozinho em um barracão, ao lado da casa de sua irmã, também idosa e com depressão, um irmão idoso e com esquizofrenia, e um sobrinho também esquizofrênico, etilista e usuário de drogas ilícitas. Não possuía boa relação com a família. Realizava tratamento com medicações controladas que eram administradas por sua agente comunitária de saúde, ele próprio e a irmã. Apesar dos esforços, o uso dos fármacos ocorria de forma incorreta. O senhor era acompanhado por um psiquiatra que o atendia no Centro de Atenção Psicosocial (CAPS) de um município adjacente. Residia exatamente à frente de onde instalava-se o CRAS do município, mas quando saía de sua casa, as portas da instituição eram trancadas. Em uma reunião referente à saúde mental dos pacientes da região atendida por aquele CAPS, da qual participaram também os profissionais atuantes no CRAS e a enfermeira da ESF em questão, a situação do senhor foi colocada para discussão por alguns dos presentes que, majoritariamente, defenderam a ideia de que, no referido caso, a negligência era inevitável, pois o senhor oferecia risco aos próprios profissionais. Não obstante, a enfermeira (recém formada e, portanto, pouco creditada) trouxe uma ideia diferente de trabalho para com o paciente, relatando uma estratégia de cuidado utilizada com o senhor e bem sucedida: o acolhimento e a humanização. Segue o relato: Em determinada ocasião, o senhor “A” precisaria comparecer a uma consulta ao CAPS que o atendia, suas medicações estavam desajustadas. No entanto, recusava-se a entrar na ambulância que o conduziria. Medidas foram tomadas por parte de profissionais da equipe, sendo utilizada a coação como estratégia após a primeira recusa do idoso. O vice prefeito da região e policiais foram chamados para a abordagem, curiosos se aproximaram. A enfermeira, ao chegar no distrito e ter conhecimento da situação realizou sua primeira tentativa: o diálogo com o paciente, sozinho. O mesmo estava evacuado e, portanto, o motorista da ambulância não queria levá-lo. O senhor aceitou dirigir-se à ESF, próxima à sua casa. Foi lhe dado alimentação e, logo após, assustou-se e voltou para casa. A enfermeira foi novamente ao seu encontro e, na tentativa de acolhê-lo, perguntou seus sentimentos e o que o assustava. O senhor expressou medo diante dos policiais, pavor de ser novamente contido e enviado a uma instituição manicomial como já havia acontecido, e medo de que lhe administrassem medicamentos à força e o matassem. Novamente a enfermeira, valorizando seus sentimentos o conduziu à unidade, afastou os curiosos, informou que os policiais não o fariam mal e limpou suas fezes. Ainda assim, havia resistência por parte do condutor da ambulância e de outros pacientes que seriam levados ao CAPS, devido ao odor do senhor, que uma vez mais afastou-se. Na terceira abordagem da enfermeira na casa do paciente, o mesmo mostrou-se irritado e apresentou-lhe um porrete em uma das mãos. Ciente dos riscos, mas também da necessidade de acolhimento do paciente, a mesma recorreu ao diálogo sereno, acalmou-o e ofereceu-lhe a mão, como prova de confiança. O senhor abaixou o porrete e aceitou o cumprimento dizendo: “Eles vão me machucar, eu só vou se você for comigo”, ao que a profissional respondeu: “Ninguém vai te machucar, porque eu estarei com você e ninguém vai me machucar. Porém, se vamos dar essa volta, o senhor precisa estar bonito, vamos trocar essa roupa? Você fica mais bonito com aquela ali que está limpinha.” Resultados e/ou impactos: A partir da referida situação e do vínculo criado o paciente passou a aceitar receber injeções de haldol aplicadas pela enfermeira, consentiu visitas domiciliares a fim de ser avaliado e aceitou comparecer às consultas psiquiátricas subsequentes. Na equipe, houve a tentativa de sensibilização dos demais profissionais acerca do potencial do emprego das tecnologias leves de cuidado, não somente em contextos de adoecimento mental. Houve resistência, mas o próprio comentário de cidadãos curiosos que observaram a cena e ficaram impressionados com o poder daquela abordagem auxiliou os profissionais a vislumbrarem a humanização como real estratégia de cuidado. Infelizmente o mesmo não ocorreu com os profissionais do CRAS, havendo assim uma grande lacuna na rede de cuidado local devido a estratégias de acolhimento que permaneceram não aplicadas e ao fato de que esses profissionais influenciavam outras pessoas a vislumbrarem o senhor como assustador, o que o distanciava dos demais cidadãos da localidade. Considerações finais: A condição de dignidade existente a cada cidadão precisa ser legitimada por si mesmo e pelos que estão ao seu redor. Quando um paciente sofre de acometimentos à sua saúde mental, essa percepção pode ficar distorcida. No entanto, cabe aos profissionais de saúde assistirem a todos pautados na premissa da humanização, do acolhimento, a fim de contribuírem para a restauração da dignidade humana. Quando posturas verticalizadas ou coercitivas são tomadas, a situação de vulnerabilidade do ser envolvido é elevada, e perde-se o potencial libertador e fortalecedor que constituem o cuidado em sua essência.