Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Tu estás me escutando? Desmontando manicolonialidades na escuta em saúde mental
Sharyel Barbosa Toebe

Última alteração: 2022-02-23

Resumo


Carta à minha escuta

 

O ato de escutar pode ser entendido como profissão? É a base da profissão que escolhi. Mas escutar, em sua radicalidade, não aprendi quando me formei formalmente enquanto profissional. Esta formação, que coloca na forma de uma educação alicerçada no racismo estrutural e institucional, na misoginia e na branquitude que imperam em nossas escolhas teóricas e metodológicas, ainda se reitera, se reatualiza, se reforma, sem mudar muito sua forma.

Escolhi a palavra escolha, porque entendo que precisamos encarar isso como uma ação. Assim como bell hooks[1] toma o amor enquanto ação, prática e exercício, distinguindo de um sentimento que pode ser entendido como incontrolável, entendo que precisamos tomar os atravessamentos da colonialidade em nossa escuta como responsabilidade nossa e agirmos para transformá-la. Sofia Favero[2] nos (re)lembra que, quem opera saúde mental como prática de trabalho, está sempre reinventando-a. No fazer cotidiano, atualizamos as performances da branquitude e da cisheteronormatividade. Tem me feito sentido tomar você, escuta, enquanto montada, trazendo para a cena que tudo é montagem e performance, voltando o olhar para a norma, pois ela nunca é olhada, entende-se neutra. O que é entendido como saúde (mental) é um padrão que foi historicamente desenhado, inscrito enquanto branco, heterossexual, cisgênero. Por isso, escolho tanto repetir as palavras norma e forma (e seus derivativos), para ver se escutamos, para escutar se as vemos. A norma precisa ser apontada, precisa ser posta em questão. É necessário devolver aos centros os olhares que eles lançam às periferias. Questionar a norma, desnaturaliza-la. Como é ser escutadora branca? Como é ser escutadora heterossexual? Como é ser escutadora cisgênera? Como isso se atravessa no seu trabalho? Questionar até labirintear, zonzear no labirinto que habita o ouvido, para desocupar o lugar fixo das normas, das formas e das certezas universalizantes. Apostar em uma escuta labirinteada e uma escrita rascunhada para ousar novas possibilidades, desmontações da colonialidade que constitui a escuta.

Enquanto mulher branca cisgênera lésbica questiono sobre o peso da heterossexualidade compulsória em minha vida, sobre as performances do que denominamos, no pensamento dicotômico, de masculinidade e feminilidade. Sinto os olhares, e até meu próprio receio pelos olhares, quando performo algo fora do considerado feminino. Conto isso para falar sobre como o que é “dissidente” da norma é entendido como montação, como ação que se faz fora e para confrontar a norma, mas se uma mulher cisgênera perfoma feminilidade, não é visto como montação, e sim como natural.

Estimada escuta, para trabalharmos bem, precisamos radicalizar a premissa de que não há nada natural. Por isso, quero te perguntar: como sentes os atravessamentos da colonialidade em ti? E também partilhar essa pergunta com escutas de outras pessoas, de outres profissionais de saúde mental. Também me interessa criarmos e mapearmos as possibilidades de operarmos desde a antiminicolonialidade. Lembra daquele tempo em que escutávamos um grupo de mulheres e também as histórias de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo? Acredito terem sido experiências mais transformadoras do que aquelas de uma sala de aula uni-forme da graduação. Carolina denominando a favela de “quarto do despejo”, onde está tudo o que a sociedade não quer. O que não é homem, branco, heterossexual e cisgênero, não tem espaço nos cômodos principais da casa-sociedade. Quanto mais marcadores de classe, raça e gênero mais próximos do quarto de despejo. Conceição nomeando como insubmissas as lágrimas das mulheres, e nos mostrando sobre a produção de enlouquecimento e morte da família Vicêncio, como tantas histórias que escutamos e conhecemos nos serviços de assistência das políticas públicas. E a participante do grupo de mulheres, que era racistamente silenciada, não escutada pelas outras participantes? Insubmissas são as lágrimas dela, até mesmo quando outras mulheres, através da branquitude, tentam submete-la a um não-lugar.

Stella do Patrocínio, em seu falatório, denuncia o hospital-manicômio como produtor de adoecimentos. Ele parece casa. Ele é hospital. Se Peter Pál Pelbart fala sobre os manicômios mentais, penso da necessidade de estarmos atentas para que nossas escutas, possam ser casa-acolhida, e não reproduzam mais aprisionamentos, manicomializações, armários, normatividades. Estas escritas ensinam a escutar. Quando escutamos as palavras-gritos de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Stella do Patrocínio, não é possível fazê-lo com o Grande Ouvido Acostumado. Elas estouram tímpanos acostumados.

Barbara Gomes, no seu escrito-experiência sobre os encontros antimanicolonias nas trilhas desformativas em saúde mental, nos lembra que tantos manicômios são nomeados de colônia. É preciso não esquecer isto para seguirmos afirmando que a luta antimanicomial é antimanicolonial, senão, não é. Senão é reatualização das paredes do manicômio. Continuar seguindo caminhos ocidentais como se fossem os únicos, ou como se fossem o melhor dos caminhos, faz reproduzir novas-velhas colônias, pois as instituições-conhecimento são estruturadas no racismo e sexismo. Precisamos olhar para nossos "uniformes encardidos" de sujeira colonial da saúde coletiva, da saúde mental, da psicologia. Uni-formes. Forma única. Saber que se pretende universal(izante). É necessário trilharmos outros caminhos, abrir desvios, olhar para a estrada em nossas costas e seguir questionando: Como habitar um processo de reconhecimento da própria branquitude, o desfiar dos jalecos assépticos?  (habitar pois acredito que não é tarefa que se conclua, mas que se permanece) Quais autores a gente usa para escutar? São localizados territorialmente? Os sofrimentos são localizados territorialmente? Também devemos atentar para o risco da exotificação na escuta: como eu escuto o/a/e diferente se leio/assisto/estudo somente os iguais? Quais teorias e metodologias escolher para montar uma escuta-pesquisa antimanicolonial?

Assim, me interessa o enlace entre o coletivo e o íntimo. Que possamos juntes testemunhar aquilo que dificilmente conseguimos dizer e, por vezes, até tentamos evitar pensar. Por isso, a “carta à escuta” é convite a ir ao entranhado das constituições das manicolonialidades, assim como me proponho a fazer. Endereço esta primeira carta, a você, como início de um co-respondência, me lançando assim, em método que se pretende antimanicolonial: cartografar pesquisa-escuta e carta-grafar escutas e performances de raça, de gênero e orientação sexual que constituem escutas. Após este percurso às entranhas, se lançará um convite a coletivizar esta experiência íntima do que nos constitui, do que nos montamos até agora e das possibilidades outras de montação, de uma escuta na radicalidade de uma ética antimanicolonial, rascunhando os mapas dos desvios.