Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O sensível como objeto de ensino e arte como caminho: um relato de experiência
Beatriz Santana Caçador, laylla veridiana castoria silva, Fabiana Nascimento Lopes, Lucas Lobato, amanda de paula nogueira

Última alteração: 2022-02-03

Resumo


Apresentação: Não é recente o debate acerca da necessidade de se reconfigurar os modos de produzir saúde no Brasil e resgatar sua dimensão cuidadora. Sabe-se que, a despeito de todo desenvolvimento científico e possibilidades terapêuticas advindos, há, ainda, um abismo entre as práticas assistenciais e as complexas necessidades de saúde da população. Do ponto de vista teórico, há um acúmulo importante de proposições pautadas na humanização e na integralidade como possibilidades de reconfigurar esta realidade. Assim, vislumbra-se como horizonte uma reorganização dos processos de trabalho em saúde de tal modo que viabilize transformações no núcleo tecnológico de práticas em saúde trazendo como centro as tecnologias leve de cuidado. Ao trabalhador importa, dessa forma, além de um domínio técnico de seu fazer, mas, também, o desenvolvimento de competências socioemocionais que o permitam desenvolver relações intercessoras com os usuários e encontros que efetivamente produzam cuidado e não somente procedimentos. Cita-se, pois, duas linhas de frente de intervenção para induzir essa necessária reorganização do processo de trabalho. A primeira refere-se às políticas e estratégias de educação permanente, cujo enfoque está na produção de reflexão sobre o fazer dos atores que já estão nos serviços de saúde, tendo como desafio aprender a operar este novo modo de ser trabalhador, ao mesmo tempo em que o desempenham cotidianamente. A segunda, centro de análise deste trabalho, refere-se à transformação dos processos formativos com o objetivo de inserir estudantes do campo da enfermagem nesta nova lógica de produção de cuidado. Embora se reconheça hoje, na dimensão teórica, a importância de reconfigurar os projetos de ensino no campo da saúde, a formação ainda é fortemente marcada por um viés biologiscista que tem o hospital como importante lócus de ensino. Atualmente é possível perceber mudanças nos discursos tanto de professores quanto de estudantes e o reconhecimento da importância de produzir novas formas de cuidado que incorporem o sujeito e sua história de vida, transcendendo a abordagem direcionada à sua queixa clínica e patologia associada. O cuidado integral já constitui-se como arco da utopia nos projetos de ensino e nos debates teóricos, entretanto, a contradição que se apresenta na realidade é o distanciamento da experiência de cuidado e de autocuidado que os estudantes de enfermagem experimentam ao ingressar na universidade. Após anos trabalhando na docência, professores e servidores acumulam diversas inquietações e reflexões, entre elas as “deformações” que o processo formativo vem produzindo nos estudantes. Verificam-se jovens radiantes entrando na universidade com a euforia contagiante de quem está construindo seu sonho com as próprias mãos. Eles sorriem com as bocas e com os olhos cujo brilho ilumina o desânimo que porventura atinge o ofício docente. Os calouros adentram às universidades cheios de vida. Já os estagiários carregam as marcas físicas das noites sem dormir, da desesperança em mobilizar processos de mudança, do cansaço de tentar ter a matéria em dia e não conseguir, de se sentir insuficiente e incapaz por exaustivamente ter ofertado seu melhor e ter sido avaliado mal, da insegurança de estar à beira da formatura e não ter forças sequer para comemorar. Em meio a esses extremos, observa-se as renúncias silenciosas que os estudantes fazem de si mesmo no decorrer de sua caminhada formativa. Para conseguir ter o desempenho cognitivo e técnico da universidade, pouco a pouco, trocam seus esportes favoritos pela monitoria, sua participação do grupo de jovens da igreja pelo livro de duzentas páginas que será cobrado na próxima prova. Aos poucos, não conseguem visitar os familiares no fim de semana devido ao acúmulo de matérias. As leituras de ficção, romances e gibis são substituídas por artigos científicos. Os filmes que assistem são somente para fazer resenhas. Não há muito tempo para preparar uma comida e o fast food ganha espaço. Com eles, o acúmulo de peso, culpa e solidão. Como espera-se que estes futuros profissionais estabeleçam relações intersubjetivas potentes com seus usuários se não conseguem fazer isso consigo? Como produzir práticas balizadas nas primícias de humanização e integralidade se esses conceitos não encontram eco em sua vida acadêmica? Tendo em vista a problemática descrita, ofertou-se uma disciplina optativa com o objetivo de garantir horário protegido dentro do contexto acadêmico para que os estudantes vivenciassem experiências artísticas e sensíveis sem, no entanto, sentir o peso de estar em dívida com a formação. Objetivo: Relatar a experiência de realização da disciplina Laboratório de Sensibilidades no curso de enfermagem de uma Universidade Pública. Descrição da experiência: Ofertou-se uma disciplina optativa no ano de 2019 com 30 créditos (2 horas semanais) aos estudantes do curso de enfermagem de uma Universidade Pública. A disciplina foi realizada em diferentes espaços: sala de aula com cadeiras móveis para compor rodas de conversa, gramado da universidade, pátio aberto com possibilidade de ver o céu e a natureza. Participaram um docente e onze estudantes, todas mulheres, de diferentes períodos do curso. As atividades obtiveram como centro a produção de experiência sensíveis. Nesse sentido, estabeleceu-se estratégias de ensino mediadas pela arte, sendo: Retratos do cuidar (fotografias de cenas de cuidado); Itinerário afetivo (registro em forma de narrativa de acontecimentos do cotidiano que despertaram afetos); Filmes (foram escolhidos 2 filmes que tinham como centro de análise a dimensão sensível); Literatura não científica (foi escolhido um livro de romance para ser lido); Poemas; Músicas; Atividade com argila; Piquenique com alimentos produzidos por cada um dos participantes; Projetos de felicidade (conversa com usuários de serviço de saúde sobre o que lhes traz felicidade); Espiritualidade e Saúde. Cada atividade possuía uma pontuação e a mesma era conferida pela sua realização e não medida por desempenho. O foco estava na experiência e no reconhecimento dos sentimentos mobilizados pela experiência. Resultados/impactos: Percebeu-se que o objetivo da disciplina foi alcançado, não no sentido de suprir todas as lacunas sensíveis que porventura as estudantes carregavam consigo, mas possibilitou uma “rota de fuga” em meio ao contexto acadêmico, ainda fortemente marcado pela racionalidade tecnocientífica que não raro sufocam, silenciam ou até mutilam as dimensões sensíveis dos estudantes. Houve espaço para o olhar para si, para as experiências artísticas potencialmente capazes de produzir sentimentos, significados e afetos. As estudantes avaliaram positivamente a disciplina, participaram de modo vivo em ato e solicitaram a continuidade da disciplina até como estratégia de cuidado em saúde mental. O que poderia ter sido diferente seria deixar o livro de referência mais livre e sob escolha das estudantes e também seria interessante a produção de vídeos ou o uso de recursos de mídias sociais para registro de algumas experiências. Considerações finais: Conclui-se que é potente a estratégia de criar espaços institucionais dentro do contexto curricular para promover rupturas na dinâmica atribulada da vida no qual não há tempo para o cuidado de si.  Pode-se dizer que a disciplina constituiu um movimento de resistência à dinâmica avassaladora que nos induz a distanciar-nos do que nos provoca sensibilidade ao passo que nos é cobrado, como trabalhadores de saúde, a todo tempo, a construção de práticas em saúde que resgatem os afetos e produzam intersubjetividade.