Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Equipe multiprofissional na Atenção Básica: potências de uma experiência no contexto de retrocessos
Carine da Fontoura Fernandes, Sofia Lopes Piccinini, Scheila Mai

Última alteração: 2022-01-28

Resumo


No atual cenário pandêmico, a Atenção Básica (AB), enquanto nível de atenção complexo e com grande escopo de ações, ordenadora da Rede de Atenção à Saúde e coordenadora do cuidado, tem exercido um papel fundamental no enfrentamento ao SARS-CoV-2. Paralelamente, o governo federal avança com o projeto de desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS),  especialmente da Atenção Primária à Saúde (APS). Dentre as medidas de desfinanciamento, destacam-se: a Emenda Constitucional 95; as mudanças no financiamento do SUS em que se perde o bloco da Atenção Básica; e o Previne Brasil, que elimina o financiamento da Equipe do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Primária (eNASF-AP), repassando recursos com base em metas e captação ponderada - ferindo o princípio de universalidade. O projeto em curso defende o modelo biomédico, as mudanças ocorridas na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) em 2017, a criação da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS), a operacionalização do programa Médicos pelo Brasil, a criação do Cuida mais Brasil e a tentativa de privatizar a APS, através do Decreto nº 10.530 de 2020, cuja efetivação não ocorreu, devido à mobilização popular. Diante do contexto de desvalorização e retrocesso ao modelo de atenção à saúde, este trabalho consiste em relato de experiência de uma equipe de saúde da AB, que segue mantendo seu caráter multiprofissional, através de composição mista entre equipe de Saúde da Família (eSF) e de Apoio Matricial. Objetiva-se dar visibilidade a um modelo que expressa potencialidades e dialoga com a compreensão ampliada de saúde, contra-hegemônica à atual conjuntura - marcada por sucessivos ataques ao modelo multiprofissional, coletivo e participativo da AB. Este relato foi construído a partir da experiência em uma Unidade de Saúde (US), dentre as poucas USs 100% SUS e que   possuem um trabalho multiprofissional ampliado em Porto Alegre. Essas USs estão à parte da realidade do município, onde foi implementado o projeto de empresariamento da saúde, com a terceirização na AB em decorrência da fragilização dos princípios, diretrizes do SUS e atributos da APS, com vínculos precarizados, trabalho estabelecido a partir do produtivismo, desrespeito ao controle social, entre outros aspectos. Compondo esse projeto, o município desvaloriza o papel das/os Agentes Comunitárias/os de Saúde (ACS), através da contratação mínima de um ACS por eSF. Nesse cenário de desmantelamento, a equipe da US, cuja experiência será aqui relatada, manteve suas ações que caracterizam a AB. Essa equipe possui uma composição mista entre profissionais de saúde contratados da eSF e do Apoio Matricial (um modelo misto que se aproxima do eNASF-AP, conforme previsto na PNAB). Além das/os profissionais contratadas/os, a equipe é composta por  residentes da Residência Multiprofissional em Saúde da Família e da Residência de Medicina de Família e Comunidade; estagiárias/os de diferentes núcleos; agentes comunitárias/os de saúde, que estão sendo demitidas/os massivamente; e as/os profissionais da higienização e vigilância, cujo vínculo é terceirizado. Cabe destacar que, mesmo no contexto desfavorável de pandemia e de desmonte do modelo de atenção à saúde, que levou à redução no número de ACS por equipe e atingiu os atributos essenciais da AB (acesso, longitudinalidade, integralidade e a coordenação do cuidado), percebe-se que a equipe da US pôde compartilhar suas dificuldades, planejar ações e pensar em estratégias alternativas para que o trabalho na AB não se descaracterizasse. Isso se deve especialmente à multiprofissionalidade ampliada, em que estão presentes profissionais do apoio matricial que compõem articulações junto às eSFs. No cenário pandêmico, observou-se que as/os profissionais da enfermagem e medicina precisaram adequar prioridades, adaptando-se às situações decorrentes da Covid-19 - atendimento, monitoramento, imunização e testagem. A equipe de Apoio Matricial, por sua vez, pôde continuar desenvolvendo suas ações de AB, destacando-se a extrema relevância dessas profissionais, fazendo frente ao desmonte das equipes do eNASF-AP. O grupo de trabalhadoras do apoio matricial nessa US também reorganizou os processos de trabalho na equipe, exercendo papel de apoio à eSF no que se refere à Covid-19. As principais ações realizadas envolveram: vigilância dos casos; construção de um Grupo de trabalho chamado “Comitê de Crise”, que organizou as áreas interna e externa da US com base nas medidas sanitárias, além da promoção de espaços de acolhida e cuidado em saúde mental entre colegas da equipe; construção de espaços alternativos de educação em saúde, com produção de materiais educativos, interlocução com a população através das redes sociais e circulação no território com um carro de som;  construção de alternativas para continuidade da vigilância em saúde no território e das discussões de casos complexos;  atendimento  à população frente ao agravamento do sofrimento psíquico, situações de violência, insegurança alimentar, entre outras expressões que materializam vulnerabilidades que se intensificaram no período de pandemia. Além dessas ações, com a reorganização das atividades da APS, em um período de maior estabilidade da pandemia, a equipe de apoio matricial participou de ações de educação em saúde em espaços da rede intersetorial, como o Centro da Juventude e o Programa Saúde na Escola, e retomou os espaços de educação permanente em saúde e as atividades com o Conselho Local de Saúde. Mesmo identificando entraves que surgem da precarização do SUS e seus reflexos, destacam-se a importância e os desafios do trabalho realizado por essa equipe, que repercutiram na (re)organização dos processos de trabalho da equipe e  na produção do cuidado em saúde, em especial na pandemia de Covid-19. A possibilidade da multiprofissionalidade ampliada vem permitindo até o momento que se tenha um olhar sobre o território a partir de uma perspectiva que se aproxima do propósito da APS, dando espaço ao planejamento de ações compartilhadas, mesmo durante o período pandêmico. Nessa perspectiva, foram articuladas ações de promoção à saúde e prevenção de agravos e doenças, sem deixar de realizar as ações de enfrentamento ao SARS-CoV-2. Frente ao desmonte do eNASF-AP e o fortalecimento de uma concepção de saúde baseada no modelo biomédico, buscou-se, com este relato, evidenciar a relevância e a diferença no trabalho na Atenção Básica, quando se considera uma equipe de saúde multiprofissional, que engloba diferentes núcleos do saber como a psicologia, o serviço social, a nutrição, a terapia ocupacional, a farmácia, entre outros, juntamente com a enfermagem e a medicina.