Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Escrita sensível na pesquisa em saúde: a vida como ensaio
Jeanine Pacheco Moreira Barbosa, Luziane de Assis Ruela Siqueira, Manuella Ribeiro Lira Riquieri, Vítor Benevenuto de Freitas, Gustavo Felix do Rosario

Última alteração: 2022-01-30

Resumo


Trata-se de um relato de experiência sobre a prática com a escrita inventiva ao lado de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento da Universidade Federal do Espírito Santo. Por escrita inventiva entendemos tratar-se de uma escrita utilizada no âmbito acadêmico que buscar romper com a neutralidade e o cientificismo hegemônico que caracteriza a produção escrita científica, dando passagem às marcas que nos constituem e nos contaminam no campo de pesquisa, condição essencial para que seja possível fazer a análise de implicação das instituições envolvidas nas pesquisas produzidas na universidade. O objetivo deste relato é descrever como esse tipo de escrita faz emergir as singularidades dos processos de pesquisa, criando linhas de fuga que atendam as subjetividades envolvidas nos processos de produção de cuidado, mostrando sua importância no contexto atual, apesar da resistência que ainda persiste nos meios de divulgação de trabalhos acadêmicos, como revistas e jornais científicos.

Antes de iniciar o relato dessa experiência, é necessário compartilhar que a política de escrita que apostamos não é construída para meros relatos de resultados de pesquisa, ou seja, não é produzida após a pesquisa realizada. Essa forma de escrita sensível é demandada no próprio percurso da pesquisa, pois trata do olhar do pesquisador, da ética que norteia nossas práticas de pesquisa. Nesta perspectiva ético-política, abordamos os sujeitos em suas narrativas não como objetos de estudo e/ou dados de pesquisa, mas sim como coautoras/es. Assim, questionamos o lugar do pesquisador-especialista-detentor do saber, produzindo o lugar do pesquisador que constrói a realidade COM os sujeitos com os quais se encontra, ou melhor, com quem produzimos experiência, na direção da arte do encontro, que gera transformação. Em nossas diferentes trajetórias de pesquisa, na área de Saúde Coletiva e em Psicologia Institucional, nos alinhamos nesta aposta ético-política, compartilhando uma produção de conhecimento que é impregnada de marcas, de vida, porque busca ir ao encontro das narrativas dos sujeitos invisibilizados, silenciados, muitas vezes destituídos de sua humanidade. A escrita sensível/instituinte advém da educação do nosso olhar enquanto pesquisadoras/es que atuam na vida, que não se contentam com as verdades e histórias únicas contadas sobre esses sujeitos, que buscam, assim, pela escrita, restituir sua condição humana, legitimando suas histórias de sofrimento e de resistência, aumentando a potência de suas vidas. Uma escrita que é necessariamente contracolonial, que fissura o saber sintético, da ciência e da academia colonizada, indo ao encontro do saber orgânico, o saber/sabor da vida. Um saber desconectado da vida se torna insípido, árido, produz a desertificação da vida, se transforma em mercadoria, não transforma. E afinal, qual o sentido da produção de conhecimento se ela não estiver a favor da vida? Na prática essa escrita pode ser expressa de diversas formas e jeitos, uma vez que a inventividade é a principal característica dessa abordagem que busca, através dessa perspectiva estética, produzir novas formas de pensar/escrever/ler a pesquisa em saúde. Trata-se de uma escrita na primeira pessoa, portanto assumidamente implicada, que traz para o campo da análise acontecimentos, sentimentos, ações, percepções, que em nome de uma “objetividade purista” são deixados de fora por serem considerados desvios, erros que impedem o sucesso de uma pesquisa. Todavia entendemos que as dimensões objetivas e subjetivas são intrínsecas, e desconsiderar essa última dimensão, seria ignorar uma força que não só rege como também muda o rumo de muitas pesquisas. Por isso utilizamos a análise da implicação, na sua perspectiva institucionalista, como ferramenta para entender esses processos que nem sempre são conscientes, mas movidos por desejos e necessidades produzidos por diversas instituições (família, capital, machismo, educação, dinheiro etc) com as quais estamos implicadas(os), quer se reconheça esse fato ou não. Pode-se dizer seguindo o pensamento de Larrosa, que essa escrita toma a forma de ensaio, como uma linguagem da experiência, uma linguagem que articula de forma sui generis a relação entre experiência e pensamento, entre experiência e subjetividade, e entre experiência e pluralidade.  E o que acontece ao pensamento, à vida e à escrita quando se ensaia? Significa pensar a pesquisa de forma inseparável da vida, ao mesmo tempo que se entende a vida como obra de arte, uma vez que é uma permanente metamorfose, uma produção incessante. Por isso a escrita-ensaio favorece uma incessante (re)problematização em relação ao mundo, aos outros e a nós mesmos, pois sabe-se que até mesmo as palavras de um ensaio já estão se transformando no próprio ato da leitura, o que faz com que toda escrita-ensaio seja devir, um vir a ser, em constante transformação, que dá passagem ao que nos acontece, ao que nos toca e ao que nos passa enquanto pesquisadoras(es) no tempo presente, no agora. A experiência que ora relatamos utilizou o dispositivo das cartas para trazer as marcas que constituem a caminhada de cada pesquisadora(or) na busca pela produção de cuidado singular, interrogando “o que pode um corpo” desde a inspiração de Spinoza e Deleuze.  O ensaio, em forma de texto coletivo, contém várias epístolas endereçadas aos diferentes corpos que  (re)encontramos em nossas pesquisas ao pararmos para fazer o exercício do pensamento na segunda metade do ano de 2020, tempo em que estivemos isolados, devido à crise sanitária provocada pelo Covid-19. O texto final foi publicado no Livro Rizoma III, Saúde Coletiva e Instituições.

O endereçamento à multiplicidade dos corpos que coabitam nossos mundos de pesquisa-vida nos possibilitou lançar um olhar sensível sobre nossos próprios corpos acometidos pelo isolamento e medo diante de um vírus desconhecido e mortal. Essas marcas estão presentes no texto, assim como muitas produções científicas desse período. A diferença está no fato de que não as escondemos muito pelo contrário. Essas marcas nos permitem colocar a subjetividade à prova, ensaiando, inventando e transformando a existência a partir dos possíveis. Nosso foco não está na proposição ou nas oposições, mas na exposição da própria experiência vivida pelos sujeitos, gerando uma crítica dobrada sobre si mesmo que abre mão dos jogos de verdade e poder, suspendendo o dogmatismo e o juízo, experimentando, ensaiando outros pontos de vista que deem passagem a multiplicidade, e onde a diferença é essencial para o cuidado singular e plural. O resultado é uma escrita sensível, mas que carrega a potência de compartilhamento de resultados acessíveis a todas as pessoas, sendo da academia ou não, produzindo uma pesquisa que trabalha a favor de todas as vidas.

Este relato espera apontar caminhos para um modo de escrita, de pensamento e de vida, no qual o sujeito faz a experiência de sua própria contingência e de sua própria transformação. A rigidez acadêmica evita as singularidades dos processos de pesquisa; e a escrita inventiva configura as linhas de fuga que acolhem as subjetividades envolvidas nos processos de produção de cuidado. É o lugar do pesquisador que constrói a realidade, portanto, torna-se necessário transcender a noção de neutralidade para descobrir uma experiência que considere as disposições ético-estético-afetivas. A inventividade é a principal característica dessa abordagem que busca em um exercício de liberdade, possibilidades de pensar, compreender e perceber. Através do dispositivo das cartas, as marcas que constituem a caminhada de cada pesquisadora/or, sensações, percepções, afetos, foram compartilhadas a partir de um modo de escrever produtor de múltiplos sentidos que transbordam a dimensão normativa e ecoam a dimensão da vida.