Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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“O avesso do mesmo lugar”: o enfrentamento político do Comitê Técnico de Saúde da População Negra na cidade do Rio de Janeiro
Mariana Suzano da Fonseca Amorim, Michele Gonçalves da Costa

Última alteração: 2022-02-24

Resumo


O trabalho a seguir objetiva apresentar o Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN) da cidade do Rio de Janeiro, que se caracteriza enquanto um espaço coletivo e principal mecanismo no processo de implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) no âmbito do município do Rio. Enquanto um mecanismo regulador, a existência do Comitê evidencia as tensões e enfrentamentos na luta contra o racismo dentro dos espaços institucionais do município do Rio de Janeiro, e se coloca enquanto uma experiência de resistência e disputa política em prol da luta pela promoção de saúde e bem viver da população negra carioca.

O Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN) é um espaço para propor, formular, monitorar e avaliar ações de atenção à saúde da população negra. Conta com a participação de representantes da sociedade civil, instituições de pesquisa, universidades, gestores da Secretaria Municipal de Saúde e técnicos do Rio de Janeiro e foi oficializado pela resolução SMS-RJ Nº 1298 de 10 de setembro de 2007. O CTSPN teve sua origem regular aprovada enquanto fruto do trabalho realizado pelo movimento de mulheres que assumiam a coordenação e gerência da política de “Saúde da Mulher” da Secretaria Municipal do RJ na época, tendo como protagonista a enfermeira Louise Silva, que desde a década de 90, a partir de cursos de capacitação sobre saúde da mulher, trazia para debate o recorte racial e a necessidade de analisar as particularidades das mulheres negras dentro dos espaços de saúde. O trabalho de Louise, juntamento ao movimento negro organizado, a ONG Criola e a Rede Nacional de Religiões Afro – Brasileiras e Saúde, gestaram a partir da criação do CTSPN a primeira experiência sobre saúde da população negra dentro do âmbito da gestão política de saúde do município do Rio de Janeiro, tendo necessidade sensibilizar profissionais e gestores da saúde frente às consequências que o racismo estabelece à saúde da população negra, a fim de treiná-los para oferecerem melhor atendimento à esta população.
A partir da implementação da PNSIPN, que é uma política do Sistema Único de Saúde (SUS) firmada pela Portaria nº 992 de 13 de maio de 2009, o debate racial emplaca no âmbito nacional e o racismo passa a ser incorporado enquanto um determinante social das condições de saúde. A Política funda como objetivo a promoção da saúde integral, tendo como ênfase a redução das desigualdades étnicos-raciais e o enfrentamento ao racismo e outras discriminações dentro dos espaços institucionais do Sistema Único de Saúde.
A PNSIPN se propõe a ser uma política de cunho transversal tanto à outras políticas de saúde quanto à sua forma de gestão, estando ela assegurada nos níveis federal, estadual e municipal. A partir dessa divisão de gestão, a função do Comitê se fortalece na construção de estratégias para a implementação da Política dentro do município do Rio de Janeiro, servindo também enquanto um espaço de controle social e regulação frente a execução da PNSIPN na cidade.
Assim, podemos dizer que tanto a PNSIPN quanto o CTSPN, trazem a centralidade do debate racial dentro dos espaços das políticas sociais, sendo estes, marcos da luta da população negra organizada que disputa a todo momento por melhores condições de vida diante da realidade da formação social brasileira, que se funda em bases de herança escravocrata e de manutenção da subalternidade da população negra brasileira, ainda que no pós abolição, configurando uma disparidade de acesso a direitos e do bem viver entre estes e a população branca no Brasil.
Contudo, ainda que exista a regulação de uma Política Nacional que tenha diretrizes no combate ao racismo dentro dos espaços de saúde, há um enfrentamento constante para que o debate racial seja incorporado e considerado enquanto um marcador importante. A relativização do racismo e o racismo institucional, determinam uma realidade de negação sobre pautas raciais que culminam na manutenção da exclusão, da negligência e descaso dentro dos espaços institucionais, principalmente os espaços de saúde.

Ainda que haja a negação do debate racial e em muitos casos, o desconhecimento da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra dentro dos serviços de saúde, o Comitê segue enquanto resistência, realizando a disputa incansável pelo fim da descriminação racial dentro dos espaços institucionais, desde a gestão à ponta dos serviços.

Em relação às atividades e atuação do CTSPN, há o destaque para ações de sensibilização e educação permanente, realizadas em formato de seminários, oficinas, rodas de conversa e webinários (no contexto da pandemia). Nesses espaços o objetivo é discutir o racismo enquanto determinante no processo de saúde-doença da população negra, a PNSIPN, a importância da coleta e qualificação do quesito raça-cor, bem como a sua inclusão nos instrumentos de gestão e avaliação em saúde.

As ações, que são realizadas como controle social, são em conjunto à sociedade civil, gestores e profissionais da saúde e sofre interferência da conjuntura política da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Cada mudança de gestão na Secretaria, sobretudo de Secretários de Saúde, o Comitê (re)apresenta a pauta, a PNSIPN, as submetas (elaboradas pelo grupo em 2009) um diagnóstico situacional de saúde com dados demográficos e epidemiológicos por raça/cor sobre a cidade atualizados.

Apesar dos esforços e das distintas estratégias forjadas pelo grupo para mudar a situação de vulnerabilidade imposta a população negra na cidade, as ações e articulações - a partir do tensionamento do controle do social - eram enfraquecidas no cotidiano, o racismo institucional se colocava, as reuniões com atores chaves na gestão eram desmarcadas, a questão era sempre secundarizada, e como resultado temos instrumentos de gestão sem metas direcionadas ao enfrentamento do racismo na saúde.

Em 2020 o Comitê seguiu uma nova direção, organizando a “Mobilização Pró-Saúde da População Negra Carioca”, que articulou o diálogo com o legislativo na construção conjunta do Projeto de Lei nº 873/2021, que dispõe sobre a criação de um órgão técnico competente que junto com o Comitê para planejar, monitorar e avaliar a execução do Programa Municipal de Saúde Integral da População Negra. O próximo desafio é garantir que o Projeto de Lei seja aprovado na Câmara Municipal.

A experiência do CTSPN no território do Rio de Janeiro, demonstra como o racismo se estabelece de forma estrutural dentro dos espaços de gestão das políticas sociais e das diversas formações profissionais em saúde, que ainda seguem formando profissionais alheios à análise crítica da realidade racial brasileira. A negação do debate racial assim, impossibilita que as estratégias - a fim de suprimir o racismo - sejam realizadas, o que enfraquece a disputa política por um SUS sem discriminações.
Dessa forma, o Comitê segue exercendo uma trivial função: educar, regular, monitorar e implementar o debate sobre racismo dentro dos espaços de saúde e disputando esses espaços, a partir da criação de estratégias potentes que por narrativa da construção de um Sistema Único de Saúde de fato comprometido com todos os cidadãos, sendo este universal em direitos, equânime em acesso e integral para que cada sujeito seja compreendido a partir de suas particularidades.