Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O animal companheiro do vivente da rua no processo do cuidado: uma reflexão a partir de uma cartografia
Luiz Gustavo Duarte, Sara Gladys Toninato, Karina da Silva Presser, Flávia Maria Araújo, Daniele Gonzales Bronzatti Siqueira, Nayara Cristiny Goncalves Aquino, Maira Sayuri Sakay Bortoletto

Última alteração: 2022-02-02

Resumo


Para quem é vivente da rua, a companhia de um animal, geralmente cachorros, se faz presente como um próprio modo de vida. Essa relação é reconhecida pelos próprios viventes, bem como pelas pessoas que não estão em tal situação, pois é evidente que permeiam o modo de habitar a cidade destes viventes. Ainda que, formalmente, a Política Nacional para Pessoas em Situação de Rua (PNPSR) não contemple essa relação, ela é subentendida ou ao menos informalmente reconhecida dentro de algumas políticas públicas. Alguns Centros POP (Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua), tem em seus projetos um espaço designado para tais animais, como um canil. Além disso, durante as discussões para a elaboração de alternativas à moradia junto aos próprios representantes da população em situação de rua, o assunto relacionado aos animais sempre surge, adentra a conversa, mas muitas vezes desaparece, sem ter a devida consideração.  Seja pela busca de uma “racionalização” de recursos, ou mesmo por entenderem que esta relação com os animais é válida de ser rompida em prol de uma oferta de moradia, a questão, muitas vezes, acaba sendo colocada em um pensamento em segundo plano pelos gestores e planejadores e executores das políticas públicas. Durante uma incursão cartográfica em um Consultório na Rua (CnaR), no período de agosto de 2021 a dezembro do mesmo ano o pesquisador-cartógrafo pode acompanhar e viver certas cenas em que os animais companheiros de tais viventes da rua faziam parte do “cenário”, ou seja, nesta geografia cartográfica, os animais fazem parte dos territórios existenciais de tais pessoas. Notou-se ao longo destas cenas que os animais sempre estiveram presentes durante os atendimentos, buscas ou visitas, ainda que sempre como parte de um “cenário”, muitas vezes alheios ao olhar dos profissionais, não sendo considerados como um produtor relacional de afetos alegres naquele vivente da rua. Os animais, não funcionam nesta relação do mesmo modo como os animais que vivem na casa racionalizada. Se os animais na casa racionalizada, como aponta Jean Baudrillard, podem funcionar como um objeto da própria casa contemporânea, servindo como um companheiro que recebe todas as neuroses produzidas ao longo da vida daquele morador e tem por isso, toda sua bestialidade ignorada, ao nos referimos aos viventes da rua, o que é percebido é que seus animais não tem seu lado bestial ignorado, mas sim, afirmado na própria relação. Os animais circulam livremente numa espécie de escolha de seu companheiro, onde não necessariamente o vivente da rua escolhe o animal, mas, muitas vezes, o animal o escolhe, numa relação onde um protege o outro, divide o alimento, as caminhadas, entre inúmeros outros momentos e atividades. Diversas cenas vivenciadas durante as abordagens realizadas pela equipe do CnaR exemplificam essa relação. Muitas vezes o animal estava próximo ao vivente da rua numa espécie de “raio de convivência” onde ele o protegia enquanto dormia e, ao chegarmos, latia fortemente, mudando seu comportamento apenas a partir do reconhecimento de uma relação de proximidade da equipe com o  vivente, o que sinalizava ao animal que não representávamos perigo a seu companheiro. Não estamos assumindo que não haja tal relação em animais criados em casas racionalizadas, mas sim que aqui há de se enfatizar que aparece uma relação de proteção não hierárquica para sobrevivência na rua. Muitas vezes ambos comem da mesma comida, usam os mesmos locais como “banheiro” e bebem a mesma água, de modo que a relação, por mais que se expresse em alguns momentos de maneira similar a costumeira do cão em casa, na realidade se dá de outra forma relacional, movendo outras formas de estarem no mundo. Outra cena que faz emergir tal questão se dá quando uma vivente necessitou de um internamento em ambiente hospitalar devido a crises epiléticas aliadas a uma infecção do trato urinário, contudo ela vivia em um viaduto de trilho de trem, com seu companheiro atual e sua cachorra, que a acompanha há mais tempo que seu próprio companheiro. Ela acabou aceitando o internamento para uso da medicação devido a infecção, entretanto sua cachorra não tinha com quem ficar, pois o seu companheiro estava em uso de drogas constantemente, o que não garantia a confiança da vivente para cuidar de sua cachorra. Para garantir a manutenção do internamento, além de inúmeros outros condicionantes e situações, o animal foi acolhido por um profissional do serviço de abordagem social durante o período em que a usuária esteve internada, sem relação com algum fluxo estabelecido na política pública, mas sim por uma articulação entre os próprios profissionais numa rede informal de cuidado. Após retornar ao lugar onde habitava, em uma visita do CnaR, ela questionava sobre o retorno de sua cachorra. Depois de dois meses ela ainda não tinha sua cachorra de volta, ficando nesta situação constante de falta de sua companheira e questionamentos ao serviço que acolheu o animal, mesmo não sendo uma atribuição do serviço mas sim um arranjo informal pelos trabalhadores. Ao final do processo, a cachorra voltou para sua companheira vivente da rua, num processo que ocorreu todo fora da rede formal da política pública, mas que sem ele não lograria êxito na proposta de tratamento da infecção, por exemplo. As cenas relatadas demonstram que o animal, companheiro bestial do vivente na rua, não pode ser visto apenas como parte de um cenário onde funciona como uma paisagem, mas reforçam a potência existente nessa relação. O vivente na rua possui sua própria rede de relações, e dentre aqueles que produzem afetos alegres, muitas vezes está o seu companheiro animal, com o qual divide o pouco que conseguem no momento, numa troca que não envolve um controle e racionalização do animal, como aquele da casa racionalizada, mas sim numa própria simbiose que aumenta muitas vezes a potência de vida de ambos. Esta relação, quando desconsiderada pelas políticas públicas, ou quando apenas considerada informalmente, limita o atendimento a tal população pois ignora um ponto de atração relacional importante para o próprio vivente na rua, que muitas vezes, para estar junto do seu animal,  prefere se manter em uma condição grave, seja de saúde ou social na rua, do que em algum abrigo ou casa de passagem sem o seu companheiro.