Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Escuta e acolhimento na rua: produção de cuidado vivenciada em uma cena em um Consultório na Rua
Nayara Cristiny Goncalves Aquino, Luiz Gustavo Duarte, Sara Gladys Toninato, Karina da Silva Presser, Flávia Maria Araújo, Daniele Gonzales Bronzatti Siqueira, Maira Sayuri Sakay Bortoletto

Última alteração: 2022-02-03

Resumo


Os viventes das ruas geralmente são considerados sujeitos que “não aderem” aos tratamentos, de modo que mesmo doentes não buscam quaisquer serviços de saúde. Não raro, resistem às ofertas que lhes são feitas. Em uma vivência durante um atendimento com uma equipe Consultório na Rua (eCnaR) de um município do sul do país, quando a pesquisadora encontra um usuário, C.R., muito debilitado, relatando muita diarreia e perda de peso durante a última semana. Suas fezes estavam esverdeadas, o cheiro era forte e a fraqueza que ele apresentava era nítida. A protocolo era encaminhá-lo ao hospital. Quando oferecido uma ambulância para levá-lo, o mesmo recusou sob a justificativa de não frequentar serviços de saúde e que não iria ao hospital “de forma alguma”. No entanto, após negar diversas vezes, em um dado momento desabafou com a equipe: “A última vez que estive em um hospital foi quando minha mãe faleceu e sofri muito com isso, não vou pisar em hospital de novo, se for para morrer, que seja aqui mesmo, se não morrer hoje, morro amanhã aqui mesmo, não me importo, ninguém se importa comigo, não tenho família mesmo, sou sozinho”, expondo o histórico de situações traumáticas vividas de C.R. Deste modo, após discussão de caso com o médico da eCnaR sobre a possibilidade de uma oferta alternativa de tratamento, ao ser informado da nova opção  que tinha, C.R. consentiu. Enquanto aguardavam a chegada da medicação, duas integrantes da equipe conversaram com C.R., no qual uma delas disse: “C.R., eu sei que você está se sentindo sozinho e acha que ninguém se preocupa com você por você não ter família, mas eu quero te dizer que eu de verdade estou muito preocupada com você, pois você está correndo risco de morte. Conversamos com o médico e ele aceitou te medicar aqui mesmo, e semana que vem voltamos para acompanhar seu estado de saúde, caso você não tenha melhorado, te levaremos para o hospital tudo bem?”. C.R. aceitou, afirmando com a cabeça e com os olhos cheios de lágrimas. O médico receitou o tratamento por sete dias. Ao voltarmos para avaliá-lo o encontramos com os olhos grandes e brilhantes, e ao nos aproximarmos, ele nos mostrou uma grande quantidade de saquinhos de soro, citando que não eram os da semana anterior: “Esses eu peguei no posto, eu piorei, aí fui lá, tomei soro na veia e a enfermeira me deu esses aqui pra eu continuar tomando porque aqueles tinham acabado, aí estou pedindo para o rapaz da oficina aqui do lado gelar a água para mim. Vixe, estou bem melhor”. Tal melhora era visível, ele estava cozinhando feijoada em uma fogueira improvisada próxima às suas coisas. É possível perceber que a atitude de acolhê-lo, ouvir sobre seu sofrimento e manifestar preocupação, potencializou em C.R. o desejo do cuidado de si, o que auxiliou a procurar o serviço de saúde mais próximo, solicitar atendimento e ajuda para gelar a água para que pudesse fazer seu soro.