Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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PARA ALÉM DOS MUROS DA LOUCURA: UMA DISPUTA EM TORNO DAS POLÍTICAS DE CUIDADO
Pablo Rodrigues Alves, Amanda Castellain Mayworm, Waldenilson Teixeira Ramos

Última alteração: 2022-01-31

Resumo


Desde da década de 1970, a Psicologia tem participado ativamente dos movimentos de Reforma Sanitária e de Reforma Psiquiátrica, da criação do SUS e da implantação de uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Um dos expoentes desta postura é o Manifesto de Bauru, em 1987, que reitera: “Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agente da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso.”A luta antimanicomial, emergente desse cenário político, se afirma enquanto um processo amplo, que articula diversos atores sociais, em contraposição ao manicômio, que se origina dos mecanismos estatais de produção da loucura e violência que incidem sobre a classe trabalhadora, com seus atravessamentos de raça e gênero. A luta antimanicomial se compromete não apenas com a reforma de serviços, mas com a construção de uma nova sociedade. Assim, afirma-se a luta antimanicomial não apenas como um elemento de combate às quatro paredes do hospício, mas uma lógica que visa construir novas concepções de cuidado, de saúde e de vida.

Em uma análise de conjuntura do projeto de política em vigor no Brasil, ficam evidentes os graves retrocessos nas conquistas e garantias da Reforma Psiquiátrica. Um dos grandes expoentes desse retrocesso é o documento emitido pelo Ministério da Saúde em novembro de 2020, que propôs a revogação de 99 portarias, que destruiriam a RAPS para usuários de álcool e outras drogas e encerrariam as equipes de consultório na rua, dentre outras. Assim, apresenta-se o retorno de uma política centrada nas práticas manicomiais, reafirmando o hospital psiquiátrico como o território principal de tratamento, pautado na exclusão e violação de direitos humanos, reforçando os saberes médico-centrados, que fragilizam o cuidado integral, em rede, produzido com a participação ativa de pessoas em sofrimento mental e seus familiares.

Defronte a iminente disputa em torno das políticas de cuidado dentro e fora do campo psi, se faz perceptivo as tensões e confrontos ético-políticos das práticas de cuidado e, com isso, a constatação de que a noção do que é cuidado e do que é saúde não está dado, mas em luta. Desse modo, nos propusemos a investigar modos outros além da racionalidade biomédica. Segundo os princípios e diretrizes do SUS, saúde não é meramente a falta de doenças e nem apenas ações curativas medicamentosas. Assim, encontramos em Foucault e Deleuze ferramentas, como a escrita e a literatura, que nos amparam para uma luta que se dá no campo do cuidado ─ Escrita de si e a Literatura Menor. O gesto genealógico do pensador Michel Foucault, em suas pesquisas a respeito das práticas meditativas gregas, coloca sobre escopo de análise o discurso vencedor no ocidente, conhece a ti mesmo, e evidencia a perda dimensional do cuidado de si. Essa mesma operação reitera as veredas do cuidado enquanto práticas, certos exercícios estético de tomada da vida ─ essa noção já se difere do posto pela modernidade, um efeito de verdade do sujeito que o cristaliza e reduz suas vias inventivas e autônomas. O cuidado de si é, em última instância, o convite para que se tome o viver enquanto estética da existência ─ a vida enquanto uma obra de arte. Doravante, em Deleuze, no texto “A literatura e a vida”, a saúde se apresenta enquanto certa potência expressiva da vida, e indo para além dos objetivos já colocados da leitura e escrita, localizamos certo plano de afetação do ser no mundo. Por isso, o autor irá defender que o escritor é médico de si e do mundo ─ co-afetação de si e do outro. São esses entrelaces, então, da potência da vida enquanto uma obra de artes e a literatura como ferramenta expressiva ontológica, que vislumbramos a saúde, “escreve-se sempre para dar a vida, para libertar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga”, assim afirma Deleuze na obra Conversações. Desse modo, apostamos na literatura e na escrita como possíveis práticas de cuidado de si, sendo ferramentas antimanicomiais.

Conceição Evaristo, em uma de suas entrevistas a respeito da noção de escrevivência, afirma: “A arte é uma válvula de escape, e a literatura para mim é essa criação. [...] O movimento da escrita é o movimento da própria vida; eu acho que o movimento da própria vida é um movimento que você faz pra vencer a dor, ou pra vencer a morte [...] É o espírito de sobrevivência mesmo, é esse desejo de você agarrar-se à vida de alguma forma, e, pra mim, a literatura é essa oportunidade que você tem de se agarrar à vida.". Tal perspectiva demonstra os agenciamentos da saúde e a escrita literária, modo artístico de agarrar-se à vida, um gesto não tutelar do cuidado, porém de protagonização do viver e um determinado exercício de cuidado de si. Sua escrita é uma tentativa de produzir saúde, um recurso terapêutico. A escrevivência é, então, esse procedimento criativo das mazelas do mundo, onde quem escreve encontra os recursos para vencer a vida, ainda que para isso se tenha que sangrar. Conceição Evaristo apresenta, desta forma, todas as transversalidades da arte e da saúde, evidenciando que as práticas de cuidado podem estar presente para além das unidades e redes de saúde ─ no próprio cotidiano ─ em que o sujeito é convidado a ser ativo e responsável pela condução da sua saúde/vida ─ não assumindo uma posição de objeto. Aposta-se, portanto, em uma dimensão ética-política da saúde.

Diante dessas linhas inventivas e transversais, pode-se pensar o fazer psi na perspectiva da protagonização com o outro ─ uma afirmação da postura ético-estética do cuidado. Apesar dos inúmeros retrocessos e ataques constantes a modos não hegemônicos de cuidar, sempre se é possível criar outros mundos, linhas segmentares da vida e toda a diferença que com ela se apresenta. Está aí, então, um método de fazer e legitimar o viver e a saúde humana. Isso, por fim, disputa uma sociedade sem os muros da loucura e sem a segregação de toda e qualquer diferença, aqui estão instrumentos de confecção de si e de um mundo antimanicomial ─ uma luta que começa antes dos muros, uma luta que se apresenta na própria ética e no fazer psi.