Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Relato de experiência à luz do desmantelamento da política pública de saúde mental durante a Pandemia da Covid-19 e o exercício da cidadania através de Assembleias no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas, em Belém do Pará
Samuel Freire Furtado, José Guilherme Wady Santos, Larissa Gonçalves Medeiros, Ester Maria Oliveira de Sousa

Última alteração: 2022-01-31

Resumo


A discussão sobre normalidade tem ocupado o ser humano desde muito tempo. Relaciona-se à vários aspectos que se sobressaem na conduta do indivíduo, tais como intensidade, frequência, ausência, contraditoriedade, o que lhe causa desconforto e sofrimento, em algumas situações. Além disso, o modo de ser e de se comportar esperado do indivíduo, de acordo com o seu grupo sócio cultural, também aponta para a questão da patologia. Estudos documentais que têm o Renascimento como referência, apontam que nas sociedades ocidentais, o conceito de doença mental passou por uma constituição histórica, quando o louco vivia solto, era expulso das cidades e considerado possuidor de conhecimento cosmológico sobre os homens e o mundo. Data desse período histórico a origem da des-razão em oposição à razão, à sede da moralidade e da verdade. Posteriormente (séculos VII e VIII) a loucura passou a ser diagnosticada, tendo a igreja, a justiça e a família a responsabilidade por tal prática, tendo a transgressão das leis e do comportamento moral como os critérios balizadores, sendo os mesmos (internação e reclusão) voltados à inadequação social, muito embora os loucos fossem vistos como doentes. É nesse período, portanto, que os loucos começaram a ser recolhidos aos hospitais gerais, caracterizados como instituições assistenciais de segregação dos que foram excluídos da vida social, e que tenta-se construir um conhecimento médico sobre a loucura. Esse foi um passo em direção à segunda metade do século XVIII, quando as reflexões médicas e filosóficas passaram a localizá-la “dentro” do indivíduo e, já no final desse mesmo período, na França, se construiu a primeira instituição isolada e vigiada (o asilo), destinada exclusivamente aos loucos. O louco passou a ser normatizado por meio da prática médica psiquiátrica (surgida também nessa época), que o considerava passível de se recuperar por meio da medicação, já que considerada como doença orgânica, e por outros métodos tidos como cruéis, para os casos considerados mais graves. Foi somente na segunda metade do século XX, entretanto, que surgiram movimentos de oposição a essa forma de psiquiatria clássica, surgindo a psiquiatria social e a antipsiquiatria, o movimento de luta antimanicomial, na Itália, e que se estendeu para várias partes do mundo, inclusive no Brasil, onde repercutiu na política pública de saúde mental, no Sistema Único de Saúde (SUS). A esse processo de luta, integrou-se o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), composto por profissionais de saúde, entre eles lideranças municipais, usuários e seus familiares, participando como força ativa no esforço de construir opinião pública favorável à causa. Por meio da Lei nº 10.216/2001, foram estabelecidas novas diretrizes para políticas de saúde mental, prevendo a progressiva substituição dos manicômios no país por uma rede complexa de serviços que compreendem o cuidado em liberdade como elemento fundamentalmente terapêutico. Nesse sentido, a Portaria nº 336/2002 estabeleceu os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) nas modalidades CAPS I, CAPS II e CAPS III, definidos por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional. Entre todos os dispositivos de atenção à saúde mental, têm valor estratégico para a Reforma Psiquiátrica Brasileira, com a organização de uma rede substitutiva ao hospital psiquiátrico no país, sendo estes os principais serviços comunitários que constituem o novo paradigma de cuidado em saúde mental, álcool e outras drogas. Esse trabalho relata a experiência de Assembleias durante a Pandemia da Covid-19 que foram realizadas em um CAPS AD II, que faz parte da rede integrada de atenção psicossocial da Secretaria de Saúde do Município de Belém (SESMA) que atende demanda referenciada das Unidades Básicas de Saúde, dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) ou da Emergência Psiquiátrica do Hospital de Clínicas Gaspar Viana. A equipe do local era composta por 4 Assistentes Sociais, 2 deles no turno da manhã e 2 no da tarde; 4 psicólogos; 3 Enfermeiros; além de 3 Médicos, sendo dois psiquiatras e um clínico. Havia, ainda, 3 Terapeutas Ocupacionais, 1 Nutricionista e 2 Profissionais de Educação Física, entre os turnos da manhã e tarde. Também contava com 4 Assistentes Administrativos; 2 Serviços Gerais e 2 Agentes de Portaria. Quanto à estrutura física, era a seguinte: 1 recepção e 1 sala de espera; 1 sala de acolhimento; 4 salas para atendimentos; 1 sala de reunião técnica; 1 consultório; 1 secretaria e 1 sala de diretoria; 1 oficina de arte terapia; 1 copa; 7 banheiros e uma varanda. Nos espaços, faltavam mobiliário básico como cadeiras e, as poucas que ainda existiam, apresentavam avarias. Ainda assim, esse espaço tinha dimensões crítico reflexivas importantes diante do quadro psicossocial e clínico do público atendido e, dada a grande demanda atendida, reforçava-se as estratégias para a prevenção contra o novo coronavírus. A partir desse cenário, foram elaborados encontros semanais para realização das Assembleias, intercalando 1 turno por semana, com base na não aglomeração e no distanciamento social, onde eram priorizadas temáticas como a organização do serviço, acolhimento integral e articulações intersetoriais (Formação profissional, Segurança Pública, Educação, Direitos Humanos e Geração de Renda). Desde sua formulação junto com usuários(as) do CAPS que exercem cotidianamente seu Plano Terapêutico Singular, percebeu-se que as condições socio laborais e estruturais aqui descritas são parte do desmonte que as políticas e serviços públicos de saúde e assistência social vêm sofrendo, aparelhados por grupos de interesse privado desde o final de 2016 o qual perpassam pelas reflexões durante as assembleias. Isso envolve, no próprio CAPS, o descumprimento de uma série de parâmetros obrigatórios previstos na Portaria nº 336/2002, como a obrigatoriedade de uma atenção contínua, durante 24 horas diárias, incluindo feriados e finais de semana, porém, até o momento este serviço não foi reclassificado para CAPS AD III – 24 horas. A falta de monitoramento e transparência sobre o desenvolvimento das políticas de saúde mental no país são algumas das marcas que inauguram essa mudança, apesar das significativas conquistas alcançadas com o SUS e pelo processo gradativo de reforma psiquiátrica. Nesse sentido, dentre os vários dispositivos institucionais ou possibilidades terapêuticas proporcionadas pelos CAPS, a Assembleia visa contribuir na mobilização político social de usuários, no compartilhamento de informações e práticas em saúde que cooperam para o acesso a direitos e a terapêuticas mais adequadas à singularidade, conforme cada repertório de vida de usuários e familiares. Dessa forma, resulta em uma maior participação social, circulação da palavra, escuta, trocas de experiências, potenciamento e controle social dos usuários, ou seja, fazem parte do pressuposto de que a assembleia é um espaço democrático de discussão sobre o funcionamento cotidiano do serviço e funciona como controle social da gestão do CAPS, assim como remete ao exercício de cidadania dos usuários e, consequentemente, auxilia no seu processo de reabilitação psicossocial. Portanto, considera-se relevante o fortalecimento deste dispositivo tecnoassistencial no cotidiano do CAPS, pois além de atravessar o pertencimento coletivo da responsabilidade compartilhada pela gestão cotidiana do serviço, favorece a melhoria da qualidade da assistência, bem como amplia o protagonismo de usuários, familiares e servidores para o exercício de cidadania.