Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Jesus não tem dentes no País dos Banguelas – Necropolítica Bucal. Um ensaio autoetnográfico.
Rodrigo Neves

Última alteração: 2022-02-23

Resumo


Este estudo, resultante de mestrado em saúde pública, busca desnudar os aspectos das relações coloniais e raciais como dimensões do complexo processo de determinação social da saúde. Mais especificamente, buscaremos analisar relações de poder – marcadamente racistas na sociedade brasileira – no processo de trabalho em saúde bucal na Estratégia de Saúde da Família, a partir de um ensaio autoetnográfico. Entendemos que o enfoque da determinação social da saúde, no qual se inserem análises do papel das condições históricas e materiais de existência como classe e processo de trabalho, comporta também uma análise das relações de raça e poder, que podem ser estudadas através dos conceitos fundamentais da decolonialidade e da necropolítica. Para isso utilizaremos neste trabalho a autoetnografia como suporte metodológico, com o uso de diários reflexivos do autor escritos durante um período de dois anos como residente multiprofissional em saúde da família, associadas a memórias e outros escritos de um segundo período de dois anos, como dentista responsável por duas equipes e dando suporte ao consultório na rua (já como trabalhador contratado por OS). Procuraremos identificar dinâmicas de poder que se desenvolvem no curso do trabalho e/ou de sua organização, além de outras observações que julgarmos pertinentes. O uso dos diários reflexivos permite, a partir do estranhamento causado pelas suas releituras, uma reconexão com o referencial teórico utilizado no trabalho e o surgimento de linhas de pensamento não observadas antes.

Enveredando-se por cruzamentos e fronteiras das vivencias deste autor, dentista, branco de classe média, este trabalho busca traduzir a possibilidade do encontro, e sua potência,  na forma de diálogos, poesias e causos procurando relaciona-los a chaves de análise teóricas como branquitude, hierarquia e culpa. Esperamos assim estar traçando linhas de pensamento tantas vezes negligenciadas, especialmente no setor saúde, que podem nos levar a soluções diferentes das até então pensadas para problemas tantas vezes recorrentes.

A análise das experiências de minha atuação como dentista no serviço público permitiu observar que, mais do que praticar o deixar morrer, pratiquei o fazer morrer de diversas formas – algumas delas institucionalmente estimuladas –, seja nas mutilações físicas ou nas de outras dimensões como a dos sonhos e desejos. No cenário atual da sociedade brasileira, com seus racismos cada vez mais óbvios e atuantes, é necessário, cada vez mais, que o setor saúde não se furte deste assunto, sendo este o compromisso do presente trabalho.

Como se expressa a odontologia no contexto local, mais especificamente no processo de trabalho de um dentista da atenção básica em uma favela como Manguinhos, que possui um dos piores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Rio de Janeiro? Quais suas práticas e suas consequências? Perguntas que possibilitam a compreensão das singularidades da cultura odontológica, marcada pela autonomização de sua prática, a sua distância do setor saúde, pela hegemonia que exerce sobre o seu objeto e pelo poder que possui sobre os corpos mais pobres, no Brasil, notadamente os negros: de “marcar” socialmente um indivíduo.

A construção de um modelo de vida saudável vendido  para todos, como se fosse possível de ser alcançado por todos, nos ajuda a entender o conceito de promoção da saúde como utilizado hoje na Atenção Primária em Saúde (APS). A preocupação do cuidado é sempre focada no produto, na pessoa ou nos “determinantes”, e despida de seu processo social, e da determinação de fatores que atuam diretamente sobre quem vai ter saúde e quem não vai: cor de pele, gênero, idade etc. Nesse sentido, muitas vezes o que se entende por promoção de saúde pode levar a ações punitivas, como quando a atenção primária procura padronizar/colonizar comportamentos e corpos sob o suposto argumento de promover saúde, inclusive oferecendo recompensas para os usuários que melhor se “adequarem” em uma espécie de meritocracia da saúde.

Durante minha permanência nos serviços públicos de odontologia, o uso de tais abordagens se mostrava deletério para o entendimento do profissional acerca da realidade presente no mundo, o que leva muitas vezes a discursos paternalistas ou punitivos dependendo da situação: para alguns pacientes o discurso repetitivo de higiene oral, para outros o discurso culpabilizante de que não querem colaborar com o tratamento. Ignora-se que, muitas vezes, esse cuidado não se enquadra na realidade que as pessoas vivem: avós, pais, irmãos, vizinhos ... todos sem algum(ns) dente(s), todos mutilados.

Dessa forma, no caso da odontologia, não acredito ser possível estabelecer uma fronteira entre o aspecto biológico e social da boca, pois qualquer pequena mudança física pode significar a necessidade da reconstrução de uma imagem pessoal. Não se trata de uma estética vazia mas sim de uma autoimagem integral que ganha ainda mais relevância no caso do negro já que, segundo Stewart Hall, à priori ele não pode existir, pois ao mesmo não basta ser: é preciso sempre ser negro, uma imagem coletiva criada a partir de representações sociais que se sobrepõe sobre quem a pessoa realmente é. O impacto que essa alteração irá gerar só pode ser sentida por quem a sofreu, e dessa forma cabe ao usuário o papel de centralidade no seu cuidado e tratamento, gerando uma nova forma de produzir conhecimento em saúde.

Se por volta de 80 por cento dos usuários exclusivos do SUS é negro, e é sobre seus corpos que a razão gerencialista opera com mais força em detrimento da construção de uma saúde integral, estamos diante de uma situação que por si só já é racializada. A discussão sobre a saúde da população negra, instigada à nível institucional pela política nacional de saúde integral da população negra, não alcançou a ponta dos serviços de cuidado sendo sempre apagada ou esquecida e, quando vista, cercada de preconceitos, academicismos e enganos.

Neste trabalho então procuro, através de minhas vivências, contar um pouco das histórias que vivi nesses 4 anos de convívio diário com a população através de meu trabalho na APS carioca preocupado, especialmente, com o fato que os usuários não conseguem se fazer ouvir e nós não parecemos muito dispostos a escutar. Através da análise realizada durante o período do mestrado sustentada por autores como Fanon, Mbembe, Kilomba, Schucman, Bento e Hall, entre outros, concluo que existe um enorme espaço vazio  de negritude, mas preenchido de branquitude na relação entre o que um estudo acadêmico, esse trabalho por exemplo, expressa e como as coisas são recebidas, percebidas e postas em prática na ponta do serviço. Da mesma forma, dentro de uma realidade de racismo, escassez, estresse, precarização e gerencialismo fomentada e nutrida pelo sistema capitalista neoliberal cada vez mais predatório em relação às verbas dos serviços públicos, os profissionais muitas vezes ficam de mãos atadas e, simplesmente, não conseguem colocar em prática algumas das coisas pelas quais lutam e acreditam. Este trabalho acredita, e espera contribuir, especialmente na potência dos encontros, e que é a partir desses encontros que os profissionais e usuários de saúde podem reconstruir uma nova forma de fazermos saúde: menos racista, gerencial e burocrática, mais integral, universal e coletiva.