Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2022-02-07
Resumo
APRESENTAÇÃO: A temática da vulnerabilidade é muito importante no domínio da saúde e, particularmente, ao da Saúde Coletiva. A epidemia da Aids constituiu, no Brasil, um marcador não somente de reconhecimento da concepção de vulnerabilidade como central para a elaboração de Políticas Públicas, mas também para a formação de alianças com grupos prioritários considerados chave para essas Políticas. Desse modo, a definição de “grupo de risco” e/ou “população mais vulnerável” ocupava um lugar de certo consenso no imaginário daqueles/as que cuidam e são cuidados/as. No entanto, a pandemia da coronavirus disease 2019 (COVID-19), doença causada pelo vírus Sars-Cov-2, ressignificou essa noção, à medida que a experiência da dor e da morte dos profissionais de saúde desorganizava um campo disciplinar que se consolidou no enfrentamento dessas situações, bem como instituía uma ruptura no ambiente de aprendizado a partir do fechamento de universidades e da instituição do ensino remoto emergencial. Ao passo que a finitude humana invadia, como imperativo, nossas casas, as de nossos/as amigos/as, parentes e conhecidos/as, as modificações feitas para o avanço da educação médica, como a adoção de metodologias ativas, permitiu a criação de ciberespaços para o (re)contar do sofrimento oriundo de perdas que foram desacompanhadas dos tradicionais rituais de passagem. Nesse sentido, a superação de perspectivas educacionais caracterizadas pelo aprendizado impositivo corroborou para o reconhecimento, pelos estudantes, de suas próprias fragilidades, manifestadas pela emergência de novas condições sociais: a desigualdade do acesso aos aparatos tecnológicos - essenciais nesse contexto -, assim como o distanciamento social, o qual é capaz de adoecer pelo isolamento, por seu potencial desumanizante e pela frustração quanto à perda de experiências estudantis presenciais. O objetivo deste trabalho é, então, discutir como a oferta do diálogo tornou-se uma estratégia pedagógica, conforme a perspectiva freireana, para produzir cuidado durante a pandemia, ao considerar os discentes seres culturais e históricos, bem como potenciais construtores de laços de solidariedade entre si e com os educadores, manifestados pela autonomia, pela conscientização e pelo compartilhamento de experiências. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: No panorama do ensino remoto emergencial, vivenciar a Universidade Pública e o curso de Medicina têm sido um impasse comum aos/às docentes e estudantes. As vulnerabilidades individuais e econômicas ficaram ainda mais expostas, mas não se tratava apenas de um lugar geográfico onde esse processo de ensino-aprendizagem deveria ocorrer e nem mesmo somente de que tipo de tecnologia deveria mediar essa relação. Discutir os temas que são afeitos à Saúde Coletiva demandava primeiramente nos posicionarmos como sujeitos políticos, e naquele contexto, (sobre)viventes da COVID-19. A abordagem da pandemia estava prevista anteriormente no Plano de Ensino. No entanto, sua presença era enunciada a partir de um lugar-exemplo, por meio de disparadores para apresentação dos temas-problemas. Iniciado num período de recrudescimento da pandemia e com a crescente de mortes atingindo públicos até então não considerados vulneráveis, ao mesmo tempo em que a imunização ocorria de forma lenta, perceber o contexto como alicerce para as relações dos/as estudantes com a formação e o componente curricular parecia um desdobramento inevitável. Tornou-se necessário abrir o espaço formalmente para que todos/as pudessem falar de sua vida, serem perguntados/as sobre o cotidiano, as condições de estudo, os mecanismos e estratégias de proteção d(n)a família, as formas de lidar psicologicamente com o cenário vivido. Desse modo, foi preciso que docentes e discentes se conhecessem melhor, que oferecessem e reconhecessem a humanidade do/no outro em meio a uma situação fragilizante, rompendo os padrões típicos do curso. Iniciar os encontros com um lugar livre para contar sobre como foi/estou exigiu também que os/as docentes construíssem uma posição menos hierárquica com a turma, mais dialógica e menos prescritiva. Ao contar suas experiências, os/as docentes abriam os espaços para que os/as estudantes também pudessem perceber a sala de aula como espaço seguro, humanizador e de acolhimento, embora nunca tenham se encontrado pessoalmente. Além disso, os estudantes se sentiram mais amparados ao relatar suas dificuldades em relação ao sistema de ensino que estava sendo implementado e com os sentimentos ocasionados pela tensão do momento ao compreender que os docentes reconheciam e também partilhavam das mesmas dificuldades de adaptação. A vulnerabilidade, traduzida na possibilidade real de adoecimento e morte pela COVID, foi aproximada e aproximadora do grupo. A percepção de que todos são/estavam vulneráveis, e alguns mais que os outros, aliada à proposta de abertura de um espaço de diálogo que oferecesse suporte por meio da manifestação da solidariedade e da efetivação de trocas de vivências que construíssem uma relação mais consistente e madura entre discentes e docentes, a partir do rompimento parcial de laços hierárquicos, proporcionaram uma melhor experiência humanizadora no cenário pandêmico, visto que isso é essencial para desenvolvimento dos estudantes da área da saúde. RESULTADOS E/OU IMPACTOS: O processo de integrar o ambiente universitário ao espaço pessoal de cada aluno, no sentido de se trazer para casa os assuntos acadêmicos, gerou uma aproximação menos hierárquica entre alunos e professores que tiveram alguns aspectos de suas vidas pessoais muito mais expostos a partir da instituição do Ensino Remoto. Todavia, ao mesmo tempo em que essa mudança ocasionou uma aproximação com a intimidade do outro, notou-se que havia um distanciamento físico que tornava desafiador trazer para a sala de aula virtual as dores e incertezas de viver/ensinar/aprender na Pandemia. O encontro presencial ancora e permite o abraço que gera aproximação ao oferecer suporte. Produzir essa sensação de solidariedade em um ambiente remoto não foi fácil. A decisão de construir um espaço seguro que fosse receptivo exigia deslocamentos tanto dos/as docentes quanto dos/as estudantes. Ao enunciar "Eu sou feita de tão pouca coisa e meu equilíbrio é tão frágil, que eu preciso de um excesso de segurança para me sentir mais ou menos segura", Clarice Lispector elucidou a realidade de muitos alunos: é necessário se sentir seguro para se despir em um ambiente “público” e estar/reconhecer a vulnerabilidade que há em si é desafiador. Desse modo, pode-se dizer que essa foi uma experiência inovadora e desafiadora para todos, discentes e docentes, que tiveram que reconstruir o espaço sala e o modo de se viver/ensinar/aprender. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Não negamos o impacto da classe e raça na produção das mortes e adoecimentos na Pandemia, mas consideramos que (re)conhecer as vulnerabilidades individuais e socioeconômicas produzidas nesse contexto é fundamental para entendê-lo e modificá-lo. Assim, o uso inovador do ensino remoto nas Ciências da Saúde e, mais especificamente, no Ensino Médico, algo que inicialmente era visto como impossível por muitos discentes e docentes, fez-se viável. O uso do diálogo possibilitou a construção de laços de solidariedade e modificou a forma hierárquica e excludente de aprendizado, o qual se fez de modo a unir a todos em uma realidade que os afetava e os afeta. Diante disso, a vulnerabilidade deixou de ser um elemento de distinção para ser um processo a ser conhecido e enfrentado por todos/as nós.