Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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TECER EM REDE: Uma experiência intersetorial para repensar o cuidado aos adolescentes na rua no contexto da pandemia por COVID-19
Wakyla Cristina Amaro Corrêa, Priscilla Victoria Rodrigues Fraga, Izabelle Cristina Ferreira dos Santos, Amanda Laís Gonçalves Gama Pereira, Rafaela Alves Marinho, Joelson Rodrigues de Souza, Maria Cecilia Assis Araujo

Última alteração: 2022-02-03

Resumo


Apresentação

O presente relato busca discorrer sobre os inúmeros desafios enfrentados pela equipe do Consultório na Rua de Belo Horizonte (CR) no cuidado aos adolescentes que vivem em situação de rua, ou parte considerável destes que passam parte importante do dia nas ruas e retornam no período noturno para o domicílio - o que nomeamos como pessoas que fazem trajeto rua/casa - no contexto da pandemia por COVID-19.

Desenvolvimento

No município de Belo Horizonte há uma maior concentração de adolescentes em situação de rua na região central, local que possibilita maiores oportunidades de ganho financeiro, de subsistência ou doações. Nos anos de 2019 a 2020, a equipe que atua na região central passou por diversas mudanças na sua composição, o que dificultou o processo de reconhecimento dos adolescentes no território, acrescido da mudança da dinâmica territorial devido ao contexto da pandemia. A regional ficou esvaziada devido às medidas restritivas da prefeitura com o fechamento dos comércios como medida de enfrentamento à disseminação da COVID-19.

Numa tentativa de conhecer esses adolescentes, o CR - serviço que atua com oferta de cuidado em saúde às pessoas em situação de rua (PSR) - e o Centro Pop Miguilim - serviço referência de crianças e adolescentes em situação de rua e com vulnerabilidade social da política de Assistência Social - pactuaram estratégias intersetoriais que possibilitasse aos trabalhadores do CR conhecer e ser reconhecido pelos adolescentes, em contrapartida, que auxiliassem o Centro Pop Miguilim a entender o território onde esses adolescentes circulavam e permaneciam, pois com o fechamento do comércio o serviço passou a desconhecer locais ou percursos que esses adolescentes faziam.

Foi estabelecido um calendário no qual as trabalhadoras do CR passariam de forma alternada a cumprir sua jornada de trabalho por um dia da semana no Centro Pop Miguilim, de forma a aproximar desses meninos e meninas, iniciar uma tentativa de construção de vínculo e confiança, a partir do momento que conheceriam o CR em um local lido como seguro e de proteção, que é o Centro Pop Miguilim.

As trabalhadoras do CR participavam das atividades de acordo com a dinâmica do serviço, oferecendo escuta, troca de ideias, oficinas de arte educação e a partir daí construindo possibilidades de diálogo. Após a experiência, os serviços propuseram aos adolescentes uma atividade sobre educação sexual com um piquenique na praça, buscando protagonismo desses adolescentes. A dinâmica tinha como proposta que os adolescentes colocassem dúvidas anonimamente em uma caixa decorada e as profissionais dos serviços iriam elaborar respostas com os adolescentes.

A atividade foi pensada a partir da percepção do serviço de que nesse momento conflituoso da adolescência faltavam informações para que os adolescentes pudessem construir saídas menos danosas nas próprias experiências. Cerca de 6 adolescentes participaram da atividade, todos homens na faixa etária de 14 a 16 anos.

Resultados

Durante a atividade os adolescentes estavam inibidos e não aderiram à proposta pensada inicialmente. Foi proposto que cada adolescente escolhesse uma música para tocar na caixa de som como forma de quebrar o gelo entre adolescentes e técnicos. Ressalta-se que uma das motivações do CR ao buscar o Miguilim foi sobre a dificuldade da equipe em abordar os adolescentes que encontram na rua, o que fica evidente para a equipe durante a atividade.

A caixa de perguntas sobre sexualidade precisou ser transformada em uma caixa onde caberia qualquer pergunta, permitindo a partir disso que os adolescentes se apropriassem da atividade. Por vezes imagina-se que o conhecimento está do lado do serviço que propõe a atividade, principalmente quando se trata do atendimento à adolescentes, ignorando o protagonismo do outro. Cabe ressaltar, que foi perceptível que quem conseguia dizer sobre o que desejava ou precisava discutir era o usuário atendido, e ao serviço cabia a escuta e a capacidade de reinvenção a partir das demandas que surgiam do sujeito.

Durante a atividade, a redutora de danos do CR percebeu a necessidade de repensar a proposta para aproximação com os adolescentes, e assim, iniciou uma conversa sobre o uso de drogas e situação de rua, a partir da sua experiência. Foi perceptível como começaram a se envolver a partir dessa mudança proposta. Estar atento à lógica “usuário guia” inclui a escuta dos silêncios que nos mostram que é preciso pensar novas propostas que façam sentido ao usuário.

No momento em que a redutora de danos compartilhava sua experiência, foi possível um ponto de identificação e eles passaram a compartilhar, com a  segurança de estar conversando com quem partilha de uma vivência semelhante. Foram feitas várias perguntas e relatos de experiências do próprio uso, além de compartilhar histórias sobre violências vivenciadas, e as dificuldades de ser adolescentes em situação de rua.

Entre os serviços, com o passar do tempo percebemos uma maior aproximação, os técnicos das políticas passaram a se conhecer melhor, ter mais momentos de trocas sobre os casos acompanhados, sobre a função e ofertas de cada serviço. Ao CR foi possível conhecer esses adolescentes e ser reconhecidos por eles no território, que agora vêem a equipe e gritam: “Olha lá a tia do consultório na rua” e assim se torna possível as ofertas de cuidado, redução de danos e redução das vulnerabilidades na vida desses adolescentes.

A experiência fez com que a equipe do CR se sentisse mais preparada para atender esse público, que muitas vezes é negligenciado em diversos espaços. Por isso, a importância de pensar no cuidado para adolescentes considerando as complexidades dessa fase da vida, entendendo que é justamente a complexidade que torna nossa atenção e cuidado ainda mais necessários. Para o Centro Pop Miguilim foi possível construir possibilidades de maior proteção dos adolescentes, facilitando o acesso do CR nas buscas ativas, uma leitura territorial sobre a circulação dos adolescentes e possibilidades de discussões de caso no cotidiano de forma intersetorial.

Muito além do benefício para os serviços, a aproximação entre o Miguilim e o Consultório na Rua possibilitou uma maior proteção para esses adolescentes que se encontram em uma situação de extrema vulnerabilidade. Seguimos construindo práticas de cuidado possíveis junto com os usuários, a partir dos encontros que se dão tanto no Miguilim quanto no território.

Considerações finais

Ainda que a articulação intersetorial seja um trabalho desafiador e que muitas vezes parece não ter um impacto direto na qualidade do cuidado ofertado, a mesma se revela como caminho potente por permitir que trabalhadores pensem um cuidado integral ao compreender a singularidade do sujeito, bem como para reforçar que o processo saúde-adoecimento abrange diferentes aspectos e setores.

Por vezes escuta-se de trabalhadores das políticas sociais e de saúde sobre a dificuldade de atender o público adolescente, o que contribui para que esses tenham seus direitos de acesso aos serviços negados. Diante dessa dificuldade, a escolha pela troca com outros serviços que tem essa expertise se faz necessária. A via do encontro com o que não sabemos fazer é o que nos permite o aprendizado. Se a adolescência tanto nos angustia, é essencial que possamos estar dispostos a reconhecer nossas dificuldades e a partir disso aprender com os próprios adolescentes novas formas de cuidar.