Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A cartografia como dispositivo de ensino e aprendizagem na graduação em medicina: um relato de experiência
Matias Aidan Cunha de Sousa, Erich Barbosa Albuquerque Sales, João Gustavo Xavier de Queiroz, Iasmin Nunes Duarte, Daniella de Souza Barbosa

Última alteração: 2022-04-26

Resumo


Introdução:


A cartografia, iniciada pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari e introduzida no Brasil por diversos pesquisadores como Suely Rolnik, Eduardo Passos, Virgínia Kastrup, entre outros, tem como premissa o acompanhamento do processo da pesquisa com um olhar vibrátil. Por esse olhar, são identificadas as implicações do processo de produção de saberes e práticas, construindo redes e rizomas que permitem ao pesquisador ver o objeto de outra forma. A cartografia aposta em uma reversão metodológica ao cartesianismo, sendo um método não para ser aplicado, mas sim para ser experienciado, mantendo todo o rigor científico.

Tal perspectiva metodológica permite a análise de objetos de caráter subjetivos, que exigem do pesquisador a habitação em territórios múltiplos e diversos, a partir de uma pesquisa-intervenção. Para isso, o pesquisador se “in-mundiza” com o objeto, ou seja, quem pesquisa se torna “in-mundo”. Nesta metodologia, considera-se que o sujeito e o objeto são um uno em prol da mesma experiência: o conhecimento é a criação e a pesquisa vem para imergir nesse meio.

Mais especificamente no campo da saúde, a cartografia vem sendo utilizada por diversos pesquisadores, como Emerson Merhy, para avaliar os processos de trabalho de diversos serviços, como os de atenção psicossocial e a Pessoas com Deficiência (PcD). Entretanto, observa-se uma escassez na literatura científica sobre como este dispositivo também pode ser utilizado para a construção do conhecimento que não tenha fim de pesquisa  Diante disso, este trabalho tem como objetivo trazer um relato de experiência em que a cartografia foi tida como aposta metodológica de ensino e aprendizagem de um módulo da graduação de medicina.


Relato de Experiência:


A cartografia fez parte da disciplina de Saúde Coletiva III do curso de graduação em medicina da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) no campus de João Pessoa, ofertada durante o semestre letivo de 2021.2. Tal módulo, tem como objetivo discutir sobre a organização das Redes de Atenção à Saúde - especificamente a Rede de Atenção à Pessoa com Deficiência (Rede PcD) a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a Rede Cegonha -, a descentralização e regionalização na saúde, o financiamento do SUS, a Política Nacional de Regulação, as Políticas para a Atenção Ambulatorial Especializada no SUS, a Política Nacional de Atenção Hospitalar e a Regulação da Saúde Suplementar no Brasil.

Como processo avaliativo dos 50 discentes matriculados no módulo, os professores e monitores propuseram que os discentes se dividissem em grupos de seis a sete componentes nos quais teriam que cartografar algum usuário-cidadão-guia das Redes de Atenção à Saúde estudadas na tentativa de encontrar elementos que pudessem ser associados com as temáticas do módulo. Durante os quatro meses de oferta do componente curricular, os grupos iam entrevistando, de maneira remota, os usuários-guia, fazendo novos questionamentos, indagações etc.

Alguns grupos cartografaram o mesmo usuário-cidadão-guia em todas as redes e outros optaram por cartografar pessoas  diferentes nas redes propostas (Rede PcD, RAPS  e Rede Cegonha). A escolha dos usuários-cidadãos-guias se deu tanto pela identificação deles nos hospitais onde os estudantes estagiavam, de maneira presencial, como da própria rede afetiva deles, trazendo para a cena do ensino irmãos, colegas, vizinhos e familiares que tinham bioidentidades, enquanto usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), nas citadas redes de atenção.

A cada mês, os grupos eram instigados a apresentar os achados de suas cartografias por meio de slides, podcasts, músicas e vídeos, por exemplo, com apoio didático-pedagógico dos monitores. Para isso, os estudantes dispunham de perguntas norteadoras que precisavam ser respondidas na apresentação, tais como: quais serviços compunham a rede em análise, como o usuário-cidadão-guia interpretava e avaliava a rede, quais ensinamentos a cartografia deste usuário davam ao discente, entre outras.

As apresentações eram divididas em tópicos, de forma que, na introdução, o grupo deveria embasar teoricamente a temática a ser abordada a partir de materiais previamente disponibilizados pelos docentes (marcos legais e políticos do SUS sobre as redes de atenção estudadas além de artigos científicos sobre o tema) de forma contundente e criativa. Na parte da metodologia, os discentes eram instigados a descrever como foi todo o processo de acompanhamento do usuário-cidadão-guia, desde a identificação deste usuário, até as entrevistas e a permissão do usuário em participar do processo. Na parte dos resultados, os estudantes respondiam às questões norteadoras propostas pelos professores do módulo. Por fim, nas considerações finais, era o momento em que os discentes podiam expor seus aprendizados, as contribuições da cartografia para entendimento das temáticas, bem como críticas e sugestões ao dispositivo de ensino e aprendizagem.

Essas apresentações aconteceram nas quartas-feiras, às 08 horas da manhã, em sala virtual do Google Meet, devido ao isolamento social causado pela pandemia da COVID-19, no formato de roda de conversa virtual. Para isso cada grupo de discentes dispunham de 20 minutos para apresentação e mais 10 minutos para arguição dos docentes e dos monitores do módulo.


Resultados obtidos:


Para os professores, tal metodologia de ensino e aprendizagem permitiu avaliar as competências adquiridas pelos discentes no decorrer do módulo, visto que a cada apresentação os estudantes traziam novos elementos teóricos e metodológicos para discussão. Dessa forma, o estudante não se tornava objeto de avaliação, mas sim componente de um longo processo que avaliou o módulo, os discentes, os docentes, os monitores, as redes de atenção em saúde estudadas e demais temáticas do módulo. Além disso, em tempos de isolamento social imposto pela pandemia da COVID-19, foi possível que os docentes promovessem práticas cartográficas necessárias para a construção do saber-ser médico.

Para os monitores - estudantes que já haviam cursado previamente o componente curricular-, foram possíveis novas experiências que não foram vivenciadas na sua oferta, uma vez que a cartografia se reinventa e depende das interações entre sujeito e objeto. Assim, mesmo que tenhamos os mesmos usuários-cidadãos-guias, o conhecimento produzido será diferente. Além disso, também permitiu a iniciação à docência e à pesquisa científica nos monitores, uma vez que eles acompanhavam todo o processo cartográfico e também tinham espaço pedagógico para fazerem sugestões e avaliações.

Para os discentes, foi possível a aproximação com a metodologia cartográfica, bem como a construção de forma teórico-prática do conhecimento. Além disso, os estudantes romperam com a forma tradicional de ensino e aprendizagem vigente nos cursos de graduação em medicina que é centrada no professor, com determinação prévia do conhecimento e das práticas baseadas no tratamento das doenças; diferentemente, em Saúde Coletiva III, o ensino e a aprendizagem eram centrados nas relações sócio-afetivas produzidas entre discentes-professores, discentes-monitores, discentes-discentes e discentes-usuário-cidadão-guia.


Considerações finais:


Diante de tal experiência acadêmica em ambiente virtual de ensino e aprendizagem, observou-se que a cartografia pode transcender sua contribuição no campo da pesquisa e se espraiar com grande potencial para o campo do ensino e aprendizagem nos cursos de graduação em medicina,  mesmo diante de um sistema de ensino pautado em aulas expositivas. Ou seja, a cartografia transcende a produção de dados para acompanhar processos em pesquisa e se apresenta com grande potencial para praticidade no entendimento de temas nos cursos de graduação em medicina. Tal aposta permitiu que, em tempos de isolamento social impostos por pandemias, os estudantes podem sim ter práticas pedagógicas e obter o conhecimento de forma ativa. Entretanto, destaca-se que novos estudos precisam ser feitos, de forma que avaliem esta proposta metodológica de maneira mais contundente.