Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Cruzando zonas - trabalho sexual, políticas de saúde e determinantes sociais.
Iarin Barbosa de Paula, Flavia do Bonsucesso Teixeira, Tiago Rocha Pinto

Última alteração: 2022-02-23

Resumo


APRESENTAÇÃO: Há pessoas que serão sempre lembradas por seus corpos – e mais: pelo que fizeram destes corpos. Seus deslocamentos serão acompanhados pelo movimento – nem um pouco isento – de pescoços nas ruas. Olhares precisos, minuciosos, curiosos, típicos de uma moralidade cristã enraizada no prometido país dos carnavais, malandros e heróis. Aquele corpo supostamente exótico, disperso entre as categorias socialmente aceitas, não é apenas um intruso nesse universo, mas ocupa exatamente neste lugar a função de representar a norma (ou seu avesso). A produção de diálogos virtuais sobre Determinantes Sociais da Saúde, o Território e as condições de saúde das profissionais do sexo durante a pandemia da coronavirus disease 2019 (COVID-19), foi uma das atividades realizadas a partir do Ensino Remoto Emergencial como parte do componente curricular Saúde Coletiva I ministrado aos/às estudantes do curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia. Esse encontro, mediado pelo professor José Miguel Olivar (USP), apresentava uma nova perspectiva sobre o entrecruzamento dos conceitos de vulnerabilidade e de risco. Deslocava a ideia da prostituta vítima/culpada para encontrar um movimento revolucionário, absolutamente organizado, que recupera, inclusive, o conceito do que é ser transformador, na medida que possibilita que as prostitutas falem por si mesmas, para que alcancem, de fato, um lugar de participação política. Rompia também com a perpetuação da relação inexorável entre prostituição e doença sexualmente transmissível. A abertura dessa nova interface de debate desafiava também a desconfiança e o pessimismo frequentemente relacionados aos encontros de ensino-aprendizagem nos espaços virtuais. Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar essa estratégia como uma nova possibilidade de pensar os territórios, incluindo neles domínios distintos que separam universos à primeira vista irreconciliáveis – o moral e o imoral; o normal e o patológico –, bem como a travessia daquela fronteira marginalizada das práticas sexuais não reprodutivas: a zona. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: Mais do que um fenômeno estritamente comunicativo, o ciberespaço oferece suporte para ativismos, representações e experimentações, sendo, portanto, um nascedouro para diversas identidades ou a “gênese de um novo mundo”, como cunhou Manuel Castells. Daí ocorre sua emergência enquanto um possível território a ser explorado e enquanto espaço de disputa de poderes. Analisá-lo a partir dessa perspectiva permite a compreensão de suas possibilidades interativas no que tange o objeto deste trabalho: a (re)produção do conhecimento. Os debates sobre a reivindicação das prostitutas foram deslocados para a plataforma numa perspectiva dialógica, evidenciando as posições já demarcadas no debate público. Essas foram materializadas e abriram fissuras para que as narrativas que habitavam os terrenos do imaginário popular despertassem reações intensas e conflitantes: essas mulheres – cisgêneras ou transgêneras – nunca ocuparam um lugar de neutralidade. Se, por um lado, o recrudescimento do conservadorismo inquisidor insiste em marginalizar afetos e sexualidades, por outro lado, as prostitutas fazem-se ouvir, em meio às chamas das fogueiras simbólicas, por intermédio de uma organização própria em coletivos e demais formas de movimentos sociais. Em um passado não tão longínquo, suas histórias eram contadas somente pelos trabalhos acadêmicos. Hoje, tornam-se coparticipantes dessas narrativas – ora acadêmicas, ora populares – ou, na maioria das vezes, protagonistas, como as pioneiras Gabriela Leite e Lurdes Barreto. Evidentemente, essa posição de autonomia incomoda e gera reações dentro de espaços ditos progressistas, o que ajuda a compreender as barreiras construídas para os debates que propõem a regularização da prostituição como ofício laboral, bem como a mudança de perspectiva dos dispositivos de produção de cuidado. O conceito clássico de trabalho, cuja essencialidade para o entendimento da dinâmica da sociedade capitalista não pode ser negada, também oblitera a possibilidade de que trabalhadores/as se somem à luta das prostitutas. Nasce, daí, um duplo estigma: o entendimento de que o ato de prostituir-se seria indigno, alinhado à desigualdade de gênero, fatores que acirram conflitos sociais e políticos, atravessados por estruturas coletivas e esferas de atividades que se situam nas margens, ou completamente fora delas. Como entender essas pessoas e suas famílias quando chegam aos espaços de cuidado? Somos capazes de adotarmos posição de acolhimento e respeito no encontro com as trabalhadoras sexuais, bem como analisarmos o trabalho delas e estabelecermos a relação entre direitos sociais, políticos e, inclusive, reprodutivos? RESULTADOS E/OU IMPACTOS: Hoje, a puta não é mais a figura obscura da esquina. Pelo contrário, reivindica o reconhecimento como um sujeito político que escreve a própria história, complementa relatos e contesta o que é produzido sobre seu meio, assim como sobre seu modo de vida, passando pela participação na elaboração de (bio)políticas visando o combate ao HIV/AIDS e o enfrentamento da violência policial. Evidentemente, o primeiro contato com essa temática não foi destituído de estranhamento: o encontro produziu incômodos e desconfortos mas também despertou para a necessidade de alianças, necessárias à disputa política. Essas são (re)construídas diante do (re)conhecimento dos dispositivos repressivos e disciplinadores das sexualidades dissidentes, aquelas exteriores ao “círculo encantado” de Gayle Rubin. Entendemos que isso se configura como um primeiro passo na construção de bons embates políticos – e por políticas de saúde – que nos conduzam em direção à defesa dos direitos humanos, à desnaturalização da desigualdade e ao compromisso com a desmobilização de princípios higienistas. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Ter a oportunidade de refletir sobre os dilemas apresentados pelas prostitutas que se posicionavam “entre o corona ou a coronhada”, e conhecer estratégias de cuidados baseadas em políticas públicas de saúde efetivas, em tempos de isolamento social e intelectual, foi um diferencial para essa turma que acompanhou o debate ainda em momento anterior à possibilidade da vacinação para todos/as. As prostitutas não foram consideradas como grupo prioritário para vacinação, ainda que convocadas como “vulneráveis” em quase todas as pautas sobre populações negligenciadas ou de “risco” para adoecimento. Em meio a outros debates sobre retrocessos na condução da política de saúde brasileira, no governo atual, vimos também a dificuldade de superar um modelo biomédico de saúde que ainda reproduz uma concepção naturalista e puramente biológica de gênero, calcado na disciplinarização e na reclusão doméstica. Reconhecemos que para a Medicina, uma tecnologia do saber consolidada no bojo da industrialização e do desenvolvimento do capitalismo, bem como ideologicamente a serviço desses processos, parece impossível reconhecer que mulheres radicalmente opostas a essas normas sejam personagens prioritários no planejamento dos gestores de saúde. Conhecer experiências de diálogo entre as disciplinas de graduação ministradas nos cursos de Medicina, vinculadas à Saúde Coletiva e ao movimento social de prostitutas, oportunizou aos/às estudantes rememorarem o exemplo de um dos destaques do período de redemocratização: a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Considerada um marco no processo de Reforma Sanitária brasileira e na afirmação da saúde como um direito de todos, ao assegurar o controle e a participação social sobre as ações do Estado, principalmente no ainda incipiente Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, a estratégia de ensino proposta e gestada colaborativamente entre os/as docentes das duas instituições e os/as estudantes produziu alianças e indica a possibilidade de lutar pela (re)construção de identidades, poderes simbólicos e novos sentidos, para compreender conceitos que parecem simples, como Determinantes Sociais e/ou trabalho, e ainda reatualizar a expressão que circula nos movimentos sociais: “Só a luta muda a vida”.