Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2022-02-06
Resumo
Apresentação: Este trabalho foi elaborado por seis acadêmicos do primeiro período do curso de medicina da Universidade Federal de Uberlândia, dentro de uma proposta do eixo Atividades Sensoriais Reflexivas e Formativas I (ASFR I) que previa a pesquisa, a partir de uma obra cultural, sobre os princípios do profissionalismo médico. O objetivo da atividade era verificar situações fictícias que representassem exemplos de conduta médica, sobretudo em situações de dilemas morais, a fim de se analisar o comportamento dos profissionais com base no que é postulado em tratados como o Código de Ética Médica (CEM), o Relatório de Belmont e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Destaca-se a relevância destes princípios num contexto de mercantilização da saúde, como observado na carta de 2002 “Medical Professionalism in the New Millennium: A Physician Charter”. Além disso, buscou-se uma reflexão sobre como as atuais bases teóricas e Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Medicina (DCNGM) relacionam as competências e habilidades do profissional com as situações médicas observadas. A experiência ocorreu no segundo semestre de 2021 como requisito avaliativo na disciplina ASRF I, tendo destacada importância para o aprendizado sobre situações práticas da profissão num momento de restrição das atividades por conta da pandemia do COVID-19. Desenvolvimento: Iniciamos o curso de medicina num contexto de alta taxa de casos de Covid e baixa cobertura vacinal, e por isso, predominaram as aulas remotas. Os alunos observaram desde o início que essa dinâmica de ensino com contato humano reduzido torna-nos mais mecanicistas. Com isso, a falta de vivência no ambiente hospitalar e serviços de saúde (bancos de sangue, de leite e núcleo de assistência psicossocial, locais normalmente visitados pelos acadêmicos já no primeiro período) dificulta o aprendizado de atitudes simples que fariam uma completa diferença no cuidar, como a instauração de um diálogo empático e atencioso com o paciente e os colegas de trabalho. Frente a isso, nosso grupo escolheu o filme ‘Um Golpe do Destino’ (1991), de Randa Haines, como disparador para a análise do profissionalismo médico estudado ao longo do primeiro período. Os tópicos mais relevantes definidos pelos alunos foram ‘Código de Ética Médica’, ‘Comunicação médico-paciente’ e ‘Desacordos com os Direitos Humanos’, discutindo o quanto os exemplos do filme se aproximam ou se distanciam das condutas médicas apropriadas. Resultados: O trabalho foi produzido na forma de texto e apresentação oral compartilhada com a turma. Nessa obra, o protagonista, doutor Jack McKee é um médico renomado que, no entanto, tem comportamentos inadequados: é frio, distante, desvaloriza e ridiculariza os pacientes e os colegas de profissão. Como exemplo, ele faz piadas com as cicatrizes de mastectomia de uma paciente com dificuldades conjugais, com o dano cardíaco sofrido por um paciente que tentou suicídio pulando de um prédio, além de ser leniente com os erros médicos dos amigos cirurgiões e pregar para os residentes total distanciamento e frieza para com os pacientes. Nestas cenas, foi possível refletir sobre os princípios bioéticos, sobretudo a autonomia do paciente, que deve ter liberdade de decisão sobre as formas de tratamento para seu problema de saúde, enquanto o médico deve fornecer informações amplas sobre os riscos e benefícios envolvidos. Além disso, pode-se discutir também as infrações ao CEM, como no artigo 24 do capítulo IV do CEM, o qual impõe que (é vedado ao médico) “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”; no princípio fundamental XXI do capítulo I, que reconhece que “no processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.”; do artigo 23 do capítulo IV “(é vedado ao médico) tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto”. Ou ainda, no princípio fundamental XVIII postulado no capítulo I do CEM “O médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e solidariedade, sem se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados éticos”. Destaca-se também os inúmeros desrespeitos à DUDH, já que o modo de trabalho adotado pelo médico não contempla o “espírito de fraternidade” por trazer sentimentos de angústia e mal-estar a quem ele atendia. Outro ponto importante do filme é a desgastante jornada de trabalho imposta aos profissionais de saúde, um fenômeno comumente observado também no sistema de saúde brasileiro, que causa estresse psicológico e infringe o artigo 24 da DUDH “Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas”. Ao longo da trama, contudo, o médico descobre estar com câncer laríngeo e, ao receber da otorrinolaringologista Leslie Abott um atendimento autoritário semelhante ao que ele presta aos seus pacientes, começa a refletir sobre a importância do acolhimento e escuta ativa como forma de tranquilizar os pacientes e respeitar sua dignidade. Além disso, ao tornar-se amigo de uma outra paciente na mesma instituição com câncer terminal, o médico muda sua visão de mundo: abandona as atitudes que o classificariam como ‘pai e marido ruins e ausentes’ e ‘doutor e chefe de residência tecnicistas, frios e desprezíveis’, para agir de maneira completamente oposta. O médico passa a incentivar seus residentes a tratar os pacientes pelo nome para evitar objetificação e preocupa-se com o estado emocional das pessoas no seu consultório. Analisando a comunicação médico-paciente, o personagem principal também passa a ter uma abordagem centrada no paciente. Vale ressaltar que essa perspectiva está de acordo com a atualização de 2014 da DCNGM, que entende a comunicação como um aspecto chave nas consultas e tratamentos, a partir de uma relação horizontal com empatia e sensibilidade. Também, em 2017, uma resolução do Conselho Nacional de Saúde reforçou as competências em comunicação interpessoal como fundamentais para um cuidado seguro e de qualidade, pois favorece maior aderência dos pacientes ao tratamento, inclusive com melhores resultados. No contexto da formação acadêmica, os alunos do grupo levantaram algumas possibilidades de ensino e treinamento formal para a comunicação desde os primeiros períodos até o internato e a residência, a partir de processos estruturados com oportunidade de feedback e aprendizagem ativa. Foi dado especial destaque para o método OSCE (exame clínico objetivo estruturado), no qual os estudantes, observados por avaliadores treinados, atendem pacientes fictícios que simulam uma determinada doença. Conclusões: A análise do filme ‘Um Golpe do Destino’ e os ensinamentos obtidos ao longo do primeiro período despertou um olhar voltado para o paciente na hora do atendimento, entendendo o contexto no qual ele está envolto e dando a ele voz ativa nas consultas e procedimentos, como forma de humanizar o cuidar. Assim, prestar atenção nas palavras usadas e atitudes são cruciais para o bom exercício da medicina, sobretudo no acolhimento dos pacientes. Embora a pandemia tenha dificultado as atividades práticas, a execução deste trabalho permitiu um estudo aplicado dos inúmeros desafios profissionais na vivência médica a partir de exemplos representativos das situações reais, aperfeiçoando e horizontalizando cada dia mais a conduta de futuros médicos brasileiros.