Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A ARTE COMO INSTRUMENTO POLÍTICO PARA A EMANCIPAÇÃO HUMANA: EXPERIÊNCIAS DA LUTA ANTIMANICOMIAL
José William Crispim Alves, Alexsandro Batista de Alencar, Ronaldo Rodrigues Pires, Claudia Freitas de Oliveira, Nubia Dias Costa Caetano, Maria Rocineide Ferreira da Silva, Francisca Márcia Araújo Lustosa Cabral

Última alteração: 2022-02-23

Resumo


INTRODUÇÃO

Há muitos anos a arte vem produzindo rupturas em relação a construção de um novo lugar social para a loucura. No entanto, observamos que essa foi uma construção gradativa que acompanhou uma tomada de consciência sobre a função da arte na saúde mental. Historicamente, a arte se inscreveu nas práticas e cotidianos da atenção ao sofrimento psíquico sob diferentes perspectivas. De início, ela estava presente desde os manicômios com uma parte do tratamento moral, com a finalidade de combater a ociosidade e buscar recuperar o sujeito de sua alienação mental. Posteriormente, com as transformações produzidas pelo movimento da luta antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica, a introdução de terapias mediadas pela arte foi utilizada para promover o empoderamento e autonomia, bem como o restabelecimento psíquico e/ou social das pessoas. Aqui podemos destacar a experiência de Nise da Silveira que inseriu oficinas de arte como parte do tratamento oferecido aos internos do hospital psiquiátrico, contribuindo com a humanização do cuidado e o desenvolvimento do potencial artístico dos sujeitos. Na atualidade, as oficinas artísticas também fazem parte do cotidiano dos Centros de Atenção Psicossocial em todo o território brasileiro. São muitas as experiências pelo mundo afora que apresentam os benefícios dessas expressões no tocante a realocação do sujeito em sofrimento psíquico dentro de uma nova perspectiva social. Com a instituição do movimento da luta antimanicomial, enquanto movimento social que agrega usuários, familiares, profissionais e demais interessados, a arte ocupa outra função estratégica, diferente de uma perspectiva terapêutica. Ela torna-se um instrumento político de denúncia da estigmatização da loucura e as contradições sociais que operam diferentes formas de opressão. Esses usos políticos da arte evidenciam sua capacidade de produzir trocas sociais, fortalecer o convívio em liberdade e promover o protagonismo dos sujeitos que possuem sofrimento psíquico enquanto cidadãos detentores de direitos e participantes no seu meio. Sendo assim, a arte como instrumento político é uma estratégia de reconstrução de possibilidades de existência de si, do coletivo e de ações transformadoras sobre a percepção sobre o lugar da loucura na sociedade. Destarte, esse trabalho se propõe a relatar a experiencia da utilização da arte enquanto instrumento político, a partir das vivências de um usuário de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), na cidade de Fortaleza que também integra o Fórum Cearense da Luta Antimanicomial.

MÉTODO

Utilizamos do relato de experiência como método para produzir reflexões sobre as repercussões do uso político da arte. Consideramos que a experiência pessoal, mesmo vivida por um sujeito singular, guarda peculiaridades importantes dada a sua inserção social e histórica na realidade. Por isso, a reflexão sobre essas experiências possibilita também a produção de conhecimento relevante para a discussão acadêmica. Será apresentada uma narrativa das vivências do usuário em seu percurso de inserção nos cuidados dispensados pela Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, até a sua participação política no movimento cearense da luta antimanicomial. Com o auxílio dos demais integrantes do movimento, que testemunham e partilham das vivências, a narrativa foi organizada e sistematizada para apresentação.

RESULTADOS

A narrativa do usuário retratou, incialmente, sua busca de ajuda em relação ao seu sofrimento psíquico. Relata que após tentativas de suicídio, o mesmo foi encaminhado ao Hospital Psiquiátrico e sua família assim fez na tentativa de ajudá-lo. Comenta que ao procurar tal instituição acreditava que teria um tratamento que atendesse as suas necessidades. Mas para sua decepção, diz que “ali não passava de uma fachada”. Conta que com o decorrer dos dias na internação a cada momento as coisas tornavam-se mais difíceis. Refere que era tratado “como um mero número de paciente, nada humanizado”. Era medicamento e mais medicamento para “conter”. Com isso percebeu que ia perdendo sua autonomia. Conta que muitas vezes não tinha nem consciência devido a tantas medicações que eram administradas a ele. No entanto, quando acordava percebia os maus tratos físicos, não só em sua pessoa, mas nos demais pacientes. Reflete que o sofrimento psicológico ultrapassa as dores físicas, causando “feridas na alma”. Ressalta que foram várias internações e seu quadro só piorava. Com isso, percebe-se as consequências de um tratamento desumanizador, que busca silenciar as pessoas e subalternizá-las. Além disso, deixa entrever a precarização do funcionamento dessas instituições que naturalizam a violência como prática cotidiana. Conta que só posteriormente tomou conhecimento sobre os serviços substitutivos ao manicômio. Narra que foi uma Assistente Social que informou sobre os CAPS, equipamentos que até então não tinha conhecimento. Ao perceber que não teve nenhuma evolução no Hospital Psiquiátrico (manicômio), localizado em Fortaleza, resolveu ir ao CAPS referência no seu território. Chegou a pensar que lá seu tratamento seria semelhante ao recebido no manicômio. Contudo, ao chegar e ver portões abertos, as pessoas entrando e saindo livremente, percebeu que era diferente. Foi bem acolhido, foi escutado, encaminhado para um psiquiatra, onde, por sua vez, o orientou sobre grupos terapêuticos. Até então, desacreditava que essas medidas pudessem ajuda-lo, mas resolveu seguir por curiosidade e atender pedidos dos familiares. Passando a frequentar os CAPS, viu a importância de uma equipe multidisciplinar e que tal engajamento mudou sua vida. Com sua participação nos grupos terapêuticos relata que foi descoberto seus talentos artísticos através da linguagem das artes plásticas, até então desconhecidos. Com um ano ganhou o primeiro prêmio nacional: Loucos pela Diversidade, Projeto que visa estimular a produção artístico-cultural de pessoas em sofrimento psíquico no Rio de Janeiro. Depois disso vieram várias exposições de pintura e escultura, com mais premiações. Percebe-se nesse contexto que a arte passa de um instrumento terapêutico utilizado nas oficinas do CAPS para uma forma de exercício de seu ser no mundo, redefinindo sua identidade, se descobrindo artista e produzindo uma ressignificação coletiva e social. O interesse pela Luta Antimanicomial veio logo após ganhar seu primeiro prêmio. Conta que lembrou dos demais internos no manicômio, imaginando quantos talentos poderiam ser descobertos e quantas vidas resgatadas. Então, ingressou no Conselho Local de Saúde do CAPS. Observa-se que nesse momento, passa a perceber a importância da participação política e a unir sua atividade como artista à uma ação militante. Diz que sentia que podia fazer mais. Tomou conhecimento do Fórum Cearense da Luta Antimanicomial, onde relata ter sido bem acolhido e até hoje integra esse coletivo como membro. Considera ter aprendido muito com os demais militantes e, através do Fórum, passou a participar também da Comissão Intersetorial de Saúde mental-CISM do Conselho Estadual de Saúde e do Município de Fortaleza. Com isso, tem participado de várias audiências públicas, conferências, seminários onde defende a dignidade da política de saúde mental. Junto com o movimento antimanicomial permanece produzindo exposições em diferentes equipamentos culturais, como em museus, teatros e universidades no Ceará que possibilitam um diálogo sobre a saúde mental para além dos serviços de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que é o processo de cuidado produzido nos CAPS, por meio do olhar que considera as pessoas como sujeitos ativos na busca da cidadania, que possibilita o desenvolvimento de agentes políticos. Nesse ato, a arte passa a ser um instrumento político a serviço da emancipação de si mesmo e da coletividade. Como costuma dizer: “No mundo cheio de preconceito sou um sobrevivente, sim, pois vivo e respiro o milagre da arte e nela encontro paz. Se arte for loucura não quero cura”.