Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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MEDIDA DE SEGURANÇA E SAÚDE MENTAL: UMA ANÁLISE SOBRE A EFICÁCIA DO CUIDADO EM MEIO ABERTO À PESSOA COM TRANSTORNO MENTAL EM CONFLITO COM A LEI
Solange Silva Souza, Kelly Cristina Oliveira de Albuquerque, Ariane Helena Coelho Raiol

Última alteração: 2022-02-10

Resumo


APRESENTAÇÃO

A reflexão versa sobre os desafios enfrentados no processo de reinserção social de pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, que cumpriram medida de segurança em Hospital de Custodia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) no estado do Pará, contextualizando as dificuldades enfrentadas durante a desinternação, quando retornam para o ambiente comunitário. A importância de uma equipe que promova a articulação entre os serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foi essencial para potencializar espaços no território geradores de vínculos.

DESENVOLVIMENTO

A Medida de Segurança, instituída através do Decreto-Lei n° 2.848/1940, define o que é um tratamento psiquiátrico compulsório, determinado pelo juiz ao réu com sofrimento mental que cometeu um delito, existindo em duas modalidades: a Internação em HCTP e o Tratamento Ambulatorial. A pessoa portadora de doença ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que no momento do crime, esteja inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato, é caracterizada como inimputável, sem responsabilidade penal diante do Código Penal Brasileiro (CPB).

No estado do Pará, a pessoa com transtorno ou sofrimento mental em conflito com a lei, também chamada de “louco infrator”, até novembro de 2019 era internada em HCTP, hoje renomeado Hospital Geral Penitenciário (HGP), localizado no Complexo Penitenciário do município de Santa Izabel do Pará. O espaço foi inaugurado em 2005, contradizendo o previsto na lei nº 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica), que redireciona a atenção e o cuidado dispensado à pessoa com sofrimento mental.

Nos anos 90, surgiram os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) no Brasil, baseados na lógica da desinstitucionalização, sendo propostos como serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico e focados na reinserção e cuidado comunitário. Neste contexto, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) com uma dinâmica diferenciada, oportunizam a ressocialização da pessoa com transtorno mental. Ao ser considerada prioritária com a publicação do Decreto nº 7.508/2011, a RAPS ganha financiamento e diversifica os pontos de atenção destinados ao cuidado em saúde mental.

A assistência à saúde das pessoas privadas de liberdade ganhou visibilidade, quando o Ministério da Saúde (MS) lançou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), através da Portaria GM/MS nº 94/2014 foi instituída a Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP), neste mesmo ano, o Pará aderiu as portarias através da Secretaria de Saúde Pública (SESPA).

No que concerne à defesa intransigente dos direitos da pessoa com transtorno mental, merece destaque ao Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA), cuja aproximação com o processo de desinstitucionalização de pessoas que cumprem medida de segurança é recente. As dificuldades para a reinserção destas pessoas no contexto social, são grandes, tendo limitações de políticas públicas destinadas para esses sujeitos.

Algumas experiências exitosas podem ser citadas como a Corregedoria do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que implantou o Projeto de Acompanhamento Interdisciplinar ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), com objetivo de realizar a mediação entre o tratamento e o processo jurídico, oportunizando o cuidado ampliado baseado na singularidade dos sujeitos e o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI), que fundamentou seus objetivos nas disposições humanizadoras da lei da Reforma Psiquiátrica, sendo responsável pela execução das medidas de segurança no estado de Goiás.

 

RESULTADOS

Em 2012, o Juiz da Vara de Execução Penal da região metropolitana de Belém (VEP), considerando a experiência exitosa do PAILI e PAIPJ, observando o parecer da Central de Equipe Multidisciplinar da Vara de Execuções Penais (CEM/VEP) do TJ/PA, no que concerne a “cessação periculosidade”, desinternou 15 pessoas que cumpriam medidas de segurança, entretanto, devido à ausência de SRT ou Abrigos para este público, permaneceram no HGP. Em 2015, o Estado implementa a República Terapêutica de Passagem (RTP), que passou a funcionar, abrigando 3 pessoas que estavam acolhidas em CAPS III e 9 dos 15 que aguardavam a saída do HGP. A EAP acompanhou todo o processo de desinternação dessas pessoas, mediando o acesso aos serviços, buscando garantir o atendimento em consonância com a lei nº 10.216/2001.

O ano de 2019 é marcado pela maior rebelião envolvendo à população privada de liberdade, no Centro de Recuperação de Altamira/ PA, resultando em 57 mortes de presos. Especialistas em segurança, afirmaram que o massacre em Altamira foi o segundo em número de mortes em penitenciárias brasileiras, perdendo apenas para o massacre do Carandiru em 1992.  Durante a intervenção, foi identificada a realidade das pessoas que cumprem medida de segurança no HGP, sendo apontado o “descuidado” dispensado à pessoa portadora de transtorno mental (ausência de assistência médica especializada, falta de medicação, trancados em celas insalubres, sem ventilação e iluminação, expostos a violência física), sem voz, esquecidos em um Manicômio Judiciário, à deriva da própria sorte.

A realidade culminou com a elaboração de um relatório conjunto entre HGP e FTIP, encaminhado ao Juiz da VEP, que expediu através de Ordem Judicial a sua interdição. A equipe técnica da EAP, CEM/VEP e HGP, foram designadas a realizar mutirões, no sentido de avaliar os internos que tinham condições de retornar à Casa Penal de origem, por não apresentarem diagnósticos que justificassem sua permanência no HGP. Com a interdição do HGP, foram efetivadas 68 desinternações, e o número atualmente de pacientes caiu para cerca 61 internações.

A participação efetiva de uma equipe multiprofissional da saúde, articuladora na RAPS, instituindo diálogos entre equipes de maneira intersetoriais, diminuiu a resistência em acolher pensar o paciente egresso do sistema penitenciário. A busca ativa de familiares e o reconhecimento das potencialidades do território, viabilizou os atendimentos futuros, ao enfatizar que os direitos humanos não são violados pela ausência de legislações, mas por falhas de eficácia, fundamentadas em cenários obscuros, intolerantes, pautados em uma cultura refratária aos direitos humanos e marcados pelo retrocesso no plano das mentalidades.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acompanhar o processo de reinserção social de 103 pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, no estado do Pará, é perceber os avanços da Reforma Psiquiátrica e, ao mesmo tempo, recordar um passado recente de violação de direitos, em suas mais variadas formas de expressão. A desinstitucionalização, vivenciada nos dias atuais, é o resultado do trabalho de diversos atores sociais, que acreditam que é possível reescrever a história de vidas que não se contam, vidas não faladas e que por anos foram silenciadas.

Pessoas que passaram anos no anonimato, hoje tem garantidos os direitos da cidadania e moradia, deixando o estigma da “loucura” e do perigo pelo crime praticado, merecendo ser protagonistas de sua própria história. Os resultados apontam que é possível promover a reinserção social da pessoa com transtorno mental em conflito com a lei, de maneira segura, onde o apoio matricial de uma equipe articuladora no território, representa a construção de vínculos, concretiza direitos e desconstroem preconceitos.