Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O vínculo como estratégia de cuidado para a produção de saúde: Um relato de caso sobre curativos e afetos
Priscilla Victória Rodrigues Fraga, Amanda Laís Gonçalves Gama Pereira, Wakyla Cristina Amaro Corrêa, Rafaela Alves Marinho, Izabelle Cristina Ferreira dos Santos, Joelson Rodrigues de Souza, Maria Cecilia Assis Araújo

Última alteração: 2022-02-06

Resumo


Apresentação

O presente trabalho tem como objetivo apresentar o relato de um caso acompanhado pelo Consultório na Rua de Belo Horizonte (CR) - serviço que atua na oferta de cuidado em saúde às pessoas em situação de rua - , a fim de expor as possibilidades do vínculo enquanto estratégia para a produção do cuidado em saúde, sobretudo para ressaltar seu potencial terapêutico. Tal percepção se dá a partir da concepção de que o  vínculo longitudinal permite o estreitamento da relação entre o usuário e o trabalhador da saúde, a partir da construção de uma relação de afeto e confiança.

Desenvolvimento

R. é um homem negro de 53 anos, natural de São Paulo e que atualmente vive  em situação de rua no centro de Belo Horizonte. O usuário inicia sua trajetória de vida nas ruas após a morte da esposa. O acompanhamento pelo Consultório na Rua de Belo Horizonte iniciou em 2020, após ser acionado pelo Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) para acompanhamento em saúde, pois R. se mostrava resistente em aceitar as ofertas de cuidado.

Após alguns atendimentos, o acompanhamento se tornou mais frequente quando o  usuário estava com uma ferida aberta na ponta dos dedos dos pés após ser roídos por ratos. Depois desse episódio, R. foi atendido na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), recebeu diagnóstico de osteomielite crônica e foi transferido da UPA para um Hospital Municipal. Após a alta hospitalar, o CR passa a acompanhar sistematicamente o usuário para garantir a continuidade do cuidado no território.

Resultados

O usuário passa a ser atendido regularmente pelo CR para troca de curativo devido a recusa do usuário em se deslocar até o Centro de Saúde. A equipe CR o acompanhava a fisioterapeuta, atendimentos clínicos, consulta ortopédica e demais demandas de saúde relativas ao pé e dificuldade em deambular. Esses momentos foram importantes para que a equipe pudesse escutar o usuário, construir com ele estratégias de redução de danos, bem como fortalecer o vínculo. A sensibilidade da equipe para as questões subjetivas de R. permitiu a transferência entre equipe CR e usuário.

No início do acompanhamento, R. já apresentava perda da mobilidade dos membros inferiores (MMII), não conseguia se locomover sem apoio e permanecia grande parte do tempo deitado em seu ponto de fixação, com prejuízos em suas atividades diárias. Diante disso, a vinculação com outros pontos da rede permitiu iniciar uma investigação para compreender a falta de mobilidade dos MMII. R. ainda não possui diagnóstico fechado, mas suspeita-se de uma possível neuropatia alcoólica.

Atualmente, R. está em acompanhamento com fisioterapeuta do Núcleo de Ampliado de Saúde da Família (NASF), tendo sido construído com o usuário um processo possível de reabilitação. Ele fala constantemente da vontade de andar como antes e a partir da escuta do que ele traz, cria-se espaço de conversas sobre as novas possibilidades. Talvez ele não ande como antes, mas de alguma forma será possível continuar caminhando. Mais do que nunca, foi possível observar a importância da autonomia e protagonismo do sujeito para a corresponsabilidade do cuidado, tal como para o processo de emancipação. Caminhamos com R. de acordo com os seus passos, é ele quem nos mostra o ritmo e a direção.

Com a realização dos curativos em R., construímos histórias e amarramos afetos. É evidente o vínculo do usuário com a equipe. Cheio de brincadeiras, sorrisos e apelidos, chama a equipe de “minhas meninas”.  R. sempre cobra presença e agradece pelos cuidados - apesar do reforço constante de que o acompanhamento em saúde é um direito.

Junto às questões de saúde urgentes e evidentes a partir da osteomielite, as questões relativas à saúde mental do usuário têm aparecido aos poucos. Ele nos relata do luto em relação à perda da esposa e da dificuldade de prosseguir na vida sem ela. A rua apareceu na sua trajetória como uma saída para a perda insuportável da pessoa amada. Ele conta do consumo de álcool, relata que diminuiu muito, e a partir das estratégias de redução de danos, hoje o usuário consegue fazer um uso menos prejudicial.

Observa-se que especialmente nos casos de atendimento à população em situação de rua, o estabelecimento do vínculo com o serviço é muitas vezes o que permite que o sujeito estabeleça vínculos com outros elementos da vida além do uso da substância. Em atividades de arte educação que faz-se muitas vezes no tempo da espera da consulta, os usuários conseguem aos poucos ir retomando a própria história de vida, compartilhando memórias e afetos.

Muito além das ofertas de insumos de redução de danos como paçocas, balas e água, a possibilidade de falar e ser escutado reduz os danos do rompimento de laços afetivos que muitas pessoas em situação de rua vivenciam. A palavra reduz danos, a partir da possibilidade de reconhecimento de si e da percepção dos usuários - muitas vezes extremamente objetificados - como sujeitos da própria história. Acompanhar R. evidenciou a importância do vínculo para possibilitar  o cuidado. Foi possível perceber que o mesmo não vinculou-se somente à equipe do CR, mas também aos outros serviços de saúde, sendo possível a referência e contrarreferência do caso.

Considerações finais

Como consequência do cuidado na lógica de usuário-guia que o serviço oferece, R. tem conseguido exercer cada vez mais o cuidado de si. Caminhando aos poucos, com autonomia ao caminhar, o usuário tem conseguido vislumbrar futuros possíveis. Cabe ressaltar que tal processo só se concebeu por se fazer possível a aposta no elo entre usuário-serviço para a produção do vínculo como estratégia para a construção particular e  coletiva do cuidado. A complexidade do caso exigiu  articulação em  rede para pensar o cuidado compartilhado, longitudinal e integral.

A resolutividade do vínculo quando se dá de forma longitudinal, sobretudo em respeito ao tempo, a autonomia e as subjetividades do sujeito demonstra a potência desta estratégia para reduzir danos e produzir cuidado. Dessa forma, fica evidente a importância de reforçar os princípios do Sistema Único de Saúde, na articulação de oferta ao cuidado em saúde. É a partir da garantia desses direitos que se faz possível um cuidado em rede e com maior qualidade na produção de saúde para os usuários.