Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Desafios e reinvenções nas ações de vacinação contra a Covid 19 pelo Consultório na Rua de Belo Horizonte
Priscilla Victória Rodrigues Fraga, Rafaela Alves Marinho Marinho, Wakyla Cristina Amaro Corrêa, Amanda Laís Gonçalves Gama Pereira, Maria Cecilia Assis Araújo, Izabelle Cristina Ferreira dos Santos, Joelson Rodrigues de Souza

Última alteração: 2022-02-03

Resumo


Apresentação

O presente relato traz a vivência de trabalhadores da gestão e da assistência do Consultório na Rua (CR) de Belo Horizonte (BH) na elaboração de planejamentos e ações de vacinação in loco da população em situação de rua (Pop Rua) de BH, de forma a complementar às demais ações de vacinação dessa população pelo município, na tentativa de aumentar o alcance vacinal das pessoas em situação de rua (PSR).

Desenvolvimento

No nível de gestão, foi pensado a construção conjunta entre a rede intersetorial do Sistema Único de Saúde e Sistema Único da Assistência Social para planejamento de um cronograma de vacinação, no qual os trabalhadores dos serviços que atuam in loco junto às PSR do município (Serviço Especializado em Abordagem Social, Programa BH de Mãos Dadas contra a Aids e Consultório na Rua) pudessem apontar os pontos com PSR, para direcionamento da rota de circulação do veículo do CR. A partir do olhar dos trabalhadores destes equipamentos públicos, a van do CR circulou pelas regionais da cidade com abordagem conjunta e sensibilização dos usuários para a vacinação no espaço da rua.

Esses trabalhadores puderam experienciar um momento ímpar e muito aguardado em meio a tantas dificuldades de atuar no cuidado à Pop Rua na pandemia da COVID-19. Um dificultador vivenciado foi a demora da chegada do imunizante de dose única no município (Janssen) que imediatamente após chegada foi destinado à Pop Rua como grupo prioritário.

Resultados

A vacinação foi iniciada com imunizante de duas doses (Astrazeneca) que além de demandar articulações para aplicação da segunda dose, apresentou quantidade significativa de efeitos adversos, como febre, mialgia, náusea e mal estar. Muitas pessoas recusaram imunização porque seu “colega de rua” sentiu-se mal após administração, ou não aceitavam reaplicação por terem apresentado efeitos colaterais na primeira dose. É importante pontuar que essa população não tem acesso ao mínimo de conforto para momentos de convalescença, como uma cama confortável, cobertores, banho, alimentação, segurança para descanso e medicações analgésicas e antitérmicas. Além disso, algumas equipes não encontraram algumas pessoas para completar o esquema vacinal, uma vez que existe alta rotatividade da PSR em algumas regionais.

Outro fato importante a ser ressaltado, é a realidade da dinâmica territorial que ultrapassa quaisquer planejamentos da gestão, e traz aos trabalhadores desafios inimagináveis no trabalho em campo. Ao acessar os locais que não eram atendidos pelo CR, foi fundamental o planejamento das ações com outros serviços que atuavam e conheciam estes territórios. Durante uma dessas ações, em um território de grande vulnerabilidade, um jovem foi executado pelo tráfico de forma violenta, durante o dia, à frente de todos que por ali circulavam. Apesar da situação de violência em questão não estar direcionada à equipe, conhecer as dinâmicas territoriais, os possíveis riscos e alertas do território e ter uma leitura deste a cada momento, é fundamental para a garantia da segurança aos trabalhadores durante o atendimento in loco.

Apesar de BH possuir significativa parcela de seu território com cobertura de Estratégia Saúde da Família (81% em 2021), destaca-se que diversos fatores tornam-se dificultadores ao acesso da PSR. Quanto ao acesso à vacinação para COVID 19, mesmo após definição como público prioritário e haver diretrizes municipais quanto ao acesso da PSR aos serviços de saúde sem a exigência de documentos, houveram relatos de usuários que não conseguiram vacinar nas Unidades Básicas de Saúde ou postos fixos, relatando como dificultador a ausência de documento de identificação.

Um desafio importante para o serviço, foi o alto quantitativo de recusas de vacinação por parte da população assistida (chegou a 20% em dado momento). As principais motivações apresentadas foram: medo/fobia de agulha, o que por vezes era contornado por ações de acolhimento por algum profissional com maior vínculo com o usuário, como o contato físico (segurar a mão, abraçar) e exercícios de respiração, porém, em algumas situações os sujeitos não conseguiram superar o medo/fobia; negação da existência do vírus ou banalização da gravidade da COVID-19, com relatos como “estou há meses, a vacina só chegou agora e estou vivo”, “tenho muita química no corpo, não pego COVID”; ou relatos acerca dos diversos riscos que já corriam cotidianamente, minimizando assim o real risco da morte; e, também presenciou-se discursos persecutórios com relação ao governo, como se o mesmo quisesse matar a população mais vulnerável, com insinuações à utilização de antrax, dentre outras. Neste último caso, sabe-se que há um grande contingente de pessoas em situações de rua com sofrimento mental, o que traz uma compreensão sobre esse tipo de situação.

Em campo, os técnicos do CR se desdobraram nas mais diversas estratégias possíveis e inimagináveis para alcançar cada possibilidade individual de vacinação, na tentativa de um mínimo de proteção coletiva para a PSR, população esta que historicamente está exposta às mais diversas formas de vulnerabilização.

Em uma situação de um usuário da saúde mental com discurso delirante, a equipe apresentou a vacina como “antídoto” para o vírus que precisava ser tomadas duas doses. Numa encenação teatral improvisada, a equipe explica que o “antídoto” protegeria, mas era importante continuar usando máscara. Em outra situação, um usuário com medo de agulha possuía uma tatuagem de um berimbau de capoeira no braço, desta forma, como tentativa lúdica de driblar o medo, foi proposto que a vacina fosse aplicada no berimbau e o restante da equipe foi cantando e gingando capoeira na frente do usuário, assim, a estratégia lúdica possibilitou a distração para o enfrentamento do medo e a adesão à vacinação.
Em muitos territórios onde o CR atua, com destaque às cenas públicas de uso de drogas, existe a atuação do tráfico. As equipes, então, precisaram estabelecer diálogo para ofertar cuidado à PSR que atua como “atividade” (trabalhadores de ponta do tráfico que ficam mais expostos à abordagem policial, atuam como olheiros). Em alguns territórios foi possível dialogar e pactuar com as lideranças do tráfico local a possibilidade de vacinação desses indivíduos durante “a atividade”, o que nos mostrou um alcance do SUS em locais e situações inimagináveis até então.

Considerações finais

Apesar do alto quantitativo de recusas, grande parte do público abordado entendia a importância da imunização contra a COVID 19 e muitos referiam a vacinação in loco como única possibilidade de acesso à imunização.

A experiência do CR com a vacinação in loco mostrou que a oferta para garantia do cuidado vai além de planejamentos anteriores às ações, e que o usuário precisa ser o guia de seu cuidado, mostrando a cada trabalhador como atendê-lo de forma integral e singular. Além disso, atender a Pop Rua requer criar e recriar intervenções pautadas na arte, no afeto e no acolhimento com escuta qualificada para garantia do acesso aos seus direitos.