Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A arte e seu duplo: duas experiências de arte e saúde mental brasileiras contemporâneas
MARCUS VINÍCIUS MARCELINI SILVEIRA RIBEIRO, LUIS GONZAGA DE SOUZA, VITOR PORDEUS

Última alteração: 2022-02-10

Resumo


Apresentação

O potencial da arte como linguagem para exteriorização e mediação de conteúdos profundos e ocultos é efeito observado em diversas experiências por todo o mundo, podemos citar no panorama histórico internacional Carl Jung, Hanz Prinzhorn, além do próprio Sigmund Freud, Marie-Louise Von Franz e mais recentemente Frederick W. Hickling, Ronald D. Lang e Jacques Arpin. Propõe-se neste trabalho realizar apontamentos sobre duas experiências contemporâneas, desenvolvidas respectivamente nos estados brasileiros de São Paulo (Franco da Rocha - SP) e Rio de Janeiro (capital), que não por coincidência representam polos de referências nacionais pelo legado dos trabalhos de Osório T. Cesar e Nise da Silveira. Procura-se promover a reflexão sobre a função da arte, seu papel enquanto linguagem para diálogo com temas inconscientes, também refletir sobre a reprodução das experiências de arte e saúde mental e seus efeitos nos serviços de saúde e nas pessoas que os compõem. Como brilhantemente escreve Antonin Artaud, trata-se da arte e seu duplo, a arte e sua relação com a vida cotidiana e com a teia histórica, sob a luz do relato de duas experiências.

O primeiro caso é de treze anos da ocupação “Vão das Artes”, idealizada e coordenada pelo musicoterapeuta Luiz Gonzaga de Souza, em um Centro de Atenção Psicossocial no estado de São Paulo, que através da promoção de oficinas de artesanato, aulas de pintura e outras diversas atividades focadas na potência humana dos usuários e trabalhadores em saúde mental, resultou em um rico acervo de pinturas, esculturas e artesanatos que foram inseridas em feiras, congressos e encontros diversos, além de um livro homônimo com registro fotográfico das obras. A segunda experiência, de oito anos da ocupação “Hotel da Loucura” no Complexo Hospitalar Pedro II / Instituto Municipal Nise da Silveira, idealizada e coordenada pelo médico Vitor Pordeus, que também implementou uma rotina de oficinas de pintura, teatro e terapias expressivas, resultando em uma extensa produção de pinturas, esculturas e da formação de uma companhia de teatro clínico, com repertório e participação fixa de diversos usuários do sistema de assistência à saúde mental.

Desenvolvimento

As discussões levantadas neste texto, originam-se a partir do relato destas duas experiências na área da arte e saúde mental, do acompanhamento diretamente em campo desde o ano de dois mil e dezesseis até o presente momento. Também foi essencial a revisão feita em artigos e livros para o aprofundamento e desenvolvimento de relações do que já está publicado.

A principal matriz de desenvolvimento da pesquisa são as narrativas dos próprios pesquisadores a partir de diversos momentos de colaboração, observação e participação direta nas atividades realizadas no cotidiano dos projetos, também por conversas com os idealizadores, usuários e colaboradores.

A reforma psiquiátrica abriu as portas para uma grande transformação: sair de um modelo institucional excludente às pessoas portadoras de sofrimento psíquico para a possibilidade de inclusão social. A política que rege os CAPS prevê a superação desse modelo através de práticas inovadoras que produzam novos sentidos, construindo assim mudanças que venham facilitar o deslocamento do campo da doença para o campo da saúde; da incapacidade para a potencialidade; do lugar de paciente para o de agente da própria vida; do foco da instituição para o do contexto social. Tais contextos apoiam o surgimento das duas experiências aqui em destaque.

Resultados

Temos uma gama de apontamentos possíveis para realizar sobre as experiências analisadas. Como resultados materiais, há um extenso acervo de obras, pinturas, esculturas, móveis, artesanato, também a produção de obras teatrais e a formação de um grupo de teatro fixo. Todo este material foi e deve ser constantemente núcleo de estudo e análise, no seu âmbito individual, familiar e comunitário, com efeitos sobre a saúde individual dos participantes, mas também sobre as comunidades envolvidas.

Os usuários de serviços de saúde acompanhados nas atividades das experiências relatadas, são em sua maioria pessoas egressas de longas internações em manicômios, hospitais, serviços de alta complexidade e acompanhadas por muitos anos em ambulatórios com medicações e tratamentos convencionais. Muitas destas pessoas, após um período de acompanhamento, vínculo, desenvolvimento e cooperação artística nos projetos Vão das Artes e Hotel da Loucura, conseguiram alcançar estabilidade nos seus quadros psíquicos. Em muitos casos, adquirindo condições de alugar sua própria casa, administrar um emprego, melhorar as habilidades de vida diária, elevar o grau de autonomia da própria vida, bem como da vida em comunidade, melhorar a relação com outras pessoas e assim diminuir consideravelmente o número de internações e a dose de medicamentos. Estas situações resultaram na promoção da desinstitucionalização de pessoas que muitas vezes estavam internadas há anos, décadas, ininterruptas. Foi possível observar a ampliação da rede de relações para troca de informações, conhecimentos e experiências, com a participação dos usuários artistas e artesãos com suas obras em feiras, palestras, congressos e simpósios. Dos efeitos nos indivíduos, emerge também a arte como possibilidade de promover rememoração de vivências tranquilizadoras e agradáveis, ou mesmo ressignificação artística de vivências traumáticas.

Destaco o acúmulo de casos e experiências que apontam para uma possível reprodução dos efeitos positivos das experiências que seguem uma tradição de trabalho terapêutico relacionando a arte e a saúde mental, documentadas por estas duas experiências e suas referências metodológicas, que são muito próximas.

Considerações Finais

Tendo Osório Taumatugo César e Nise da Silveira não somente como referenciais teóricos importantes mas também como antecessores do mesmo território geográfico de trabalho, observamos a possibilidade de efeitos no organismo humano existentes na linguagem artística, se empregada como linguagem terapêutica de compreensão e atuação na vida. Conceito distante do difundido na arte comercial, arte de galerias e muitas vezes até das instituições públicas.

As produções artísticas e as histórias das pessoas que as produziram são sólidos indicativos de que há uma transformação possível e dentro de uma tradição metodológica reprodutível. De que há algo a mais que é necessário no tratamento em saúde para uma transformação profunda. De internos em manicômios para artistas conscientes com produção extensa e sensível. A fórmula é o tratamento humano, expressivo, livre e respeitoso, em um ambiente que cuide e possibilite o desenvolvimento da potência humana, sem preconceitos e sem julgamentos.