Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O sistema tradicional de saúde indígena: perspectivas, práticas e relações
MARIA DO SOCORRO LITAIFF RODRIGUES DANTAS, ELIANE MARA VIANA HENRIQUES, Andrea Caprara

Última alteração: 2022-02-23

Resumo


Introdução

Embora a etnologia, as antigas tradições e cultura dos povos indígenas no nordeste do Brasil seja por muitos consideradas “aculturada” ou “mestiça” ou até mesmo perdidas, há um consenso entre os pesquisadores, historiadores e antropólogos que a tradição como um dos elementos da cultura e que as antigas tradições são reelaboradas e revitalizadas.

A abordagem das práticas médicas tradicionais nos povos indígenas do Nordeste, especificamente no Ceará, procura valorizar as práticas médicas indígenas no sentido de compreender sua lógica de adoecimento e cura, na perspectiva de um trabalho associado à medicina convencional para entender os processos que envolvem a transmissão dos conhecimentos sobre as práticas médicas. O Projeto “Árvore da Vida” do Distrito Sanitário Especial Indígena do Ceará-DSEI-CE, aponta para a fragilidade nos preceitos da medicina tradicional indígena e por isso propõe que é necessário trilhar caminhos para a continuidade das práticas e praticantes dessa medicina tradicional, bem como, para a sustentabilidade de suas plantas nativas, da preservação de seus costumes e de suas práticas de cura, para o fortalecimento das práticas e saberes tradicionais.

Se os discursos oficiais usam o poder de nomear para conceituar as medicinas tradicionais, as falas indígenas remetem a saberes e a práticas de auto atenção inscritos em contextos locais particulares. Há diversas características e ditas classificações quanto aos cuidadores, detentores de saberes ou, ainda, praticantes tradicionais indígenas, tais como pajé, rezadeiras, parteiras, benzedeiras, com características específicas, onde cada um apresenta e cuida de saberes diferentes entre si mas que se complementam, onde a espiritualidade tem é o seu principal pilar  que determinada doença pode ser causada pela vingança de um espírito. Os tratamentos se referem a uma semiologia distinta da ocidental, entre as quais se identificam diversos sinais e sintomas que são tratados de acordo com sua causa, como o quebrante, o vento-caído, o mal-olhado.

Ainda assim, dentre as práticas e os praticantes tradicionais, pouco temos extraído quanto ao seu papel e suas atividades e especialmente sua determinação num sistema ou numa rede de atenção em saúde “invisível” que tem grande credibilidade no meio da comunidade, mas não é valorizada e nem inserida ou articulada com a atenção em saúde convencional. Assim, a identificação desses cuidadores tradicionais indígenas no Ceará além de caracterizar essas práticas e seu sistema na adversidade da contemporaneidade, poderia materializar meios e mecanismos para um trabalho colaborativo entre as duas medicinas, de modo a potencializar saberes e melhorar a qualidade de vida da comunidade e promover a convivência entre populações de origens culturais e étnicas diferentes. Metodologia: Através da abordagem etnográfica procurou-se identificar e compreender os praticantes e as práticas da medicina tradicional indígena, em seus diversos saberes e mapear suas especialidades, nas aldeias sua articulação com o sistema de saúde biomédico dos índios Potiguara das aldeias Mundo Novo e Jacinto, de Monsenhor Tabosa, Ceará. Identificados os cuidadores tradicionais utilizando-se a “Bola de Neve”, forma aberta, mediante a indicação dos cuidadores tradicionais ora identificados por seus pares, numa atividade associada ao projeto Árvore da Vida, em andamento no Distrito Sanitário Especial Indígena do Ceará-DSEI-CE. Foram selecionados por indicação das lideranças antigas e entrevistados, daqueles, cuidadores tradicionais indígenas das etnias Potyguara, Tabajara, Tapuia-Kariri e Gavião das aldeias Mundo Novo e Jacinto, Monsenhor Tabosa-Ceará. As informações foram coletadas durante o período de 1 ano, de 2016 a 2017. O tratamento dos dados quantitativos extraídos da amostra inicial utilizou uma tabela em Excel® com a inserção das variáveis: aldeia, nome, idade de todos os cuidadores tradicionais identificados no Ceará e o tipo de tratamento prestado e aldeia (s) de abrangência, no Polo Base de Monsenhor Tabosa, municípios de Monsenhor Tabosa, Tamboril e Boa Viagem, Ceará. Entrevistados, utilizando um temário específico , tendo sido gravadas e fotografadas. Aplicado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Utilizado o  Word® para a transcrição das entrevistas e interpretadas de modo associado aos dados coletados do campo. Pesquisa submetida e aprovada pelo CONEP, CAAE: 06957919.4.0000.5534.

 

 

No Território dos Potyguara, na Serra das Matas, em Monsenhor Tabosa, Tamboril e Boa Viagem-Ceará foram registrados 42 cuidadores tradicionais de saúde indígena, tendo a média de idade de 59 anos, 6 homens e 36 senhoras. Destes, dez cuidadores tradicionais foram entrevistados e residem nas aldeias de Mundo Novo e Jacinto. Na categoria dos cuidados, foi relatado pelos cuidadores tradicionais que eles se utilizam de orações e de materiais naturais para os tratamentos, como folhas, ervas, pedras, argila, raízes que são preparadas, rezadas e aplicadas no paciente dependendo da causa, da intensidade e da intenção da pessoa ficar “boa”. Na categoria espiritualidade, os cuidados são prestados àquele que procuram o tratamento e tem fé na cura e segue as orientações e as orações descritas que podem ser proferidas através de falas ou cantos e até mesmo sob pensamentos à distância, dependendo do caso. Uma das rezadeiras menciona que muitas vezes recebe um bilhete para rezar para alguém em outro lugar que está doente e ela o faz com muita presteza. Outro aspecto identificado na categoria do uso de materiais é que se utilizam daqueles de origem natural, extraídos de hortos medicinais nos quintais das próprias residências quando se tratam de casos “mais simples”. Na categoria tratamentos, incluem orientações de alimentação e de regras a serem seguidas durante determinado tempo. Os mais especializados, os elementos precisam ser retirados da natureza, sob rezas e cantos, quando já se inicia o tratamento. Os preparos são especialmente produzidos pelo próprio rezador-benzedor-curador. Seus horários que incluem rezas devem ser rigorosamente seguidos, sendo as curas e rezas do bendito realizadas no início da manhã ou ao final da tarde e as do meio-dia, para o mal. Existem também as rezas que não podem ser citadas, só oradas mesmo, a não ser que se trate de um treinamento de outro rezador que deverá aprender tudo. As doenças tratadas são de acordo com sua causa. As doenças que são tratadas nas aldeias são aquelas causadas independente do contato com os não-indígenas (não usam o termo branco devido a intensa miscigenação ocorrida na região nordeste). As doenças mais conhecidas e tratadas pelos cuidadores tradicionais são: vento-caído, mal-olhado, vermelha e quebrante. O tratamento inclui além do uso correto da mistura indicada, a obediência às regras e respeito à natureza e aos costumes, sendo a sua desobediência a punição com a piora da doença. Dos relatos estudados observou-se que há um descontentamento por parte dos cuidadores tradicionais quanto a sua aceitação e ao trabalho com as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena, os quais percebem certo distanciamento e pouca valorização do conhecimento e a necessidade de discussão dos casos para melhor compreensão da doença e como poderia melhorar. Percebem que alguns profissionais conversam e procuram seguir um tratamento conjuntamente, mas outros menos sensíveis não se apresentam com a mesma disponibilidade.

 

Considerações Finais

 

Os cuidadores tradicionais indígenas são identificados pelas próprias pessoas das comunidades e tem dons especiais de cura sobre as doenças tradicionais nas aldeias indígenas, formando um sistema em rede de saúde de cuidadores tradicionais especializados que atua de modo associado à biomedicina, a depender da percepção tanto dos pacientes quanto dos profissionais de saúde acerca da importância do trabalho numa abordagem de perspectiva intercultural.