Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Tristes, loucas ou más: a trajetória de mulheres em acompanhamento terapêutico
Gabriela da Cruz Miranda, Analice de Lima Palombini, Vera Lúcia Pasini, Bárbara Magnani Rodrigues, Tayse Eduarda de Mattos da Silva

Última alteração: 2022-02-18

Resumo


O projeto de extensão, ensino e pesquisa Acompanhamento Terapêutico na Rede Pública (ATnaRede), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atua de maneira interdisciplinar, oferecendo uma prática clínica junto a usuáries da atenção psicossocial e intersetorial de Porto Alegre, acompanhando-es em suas experiências cotidianas, possibilitando a ampliação de vivências no âmbito social, na perspectiva da desinstitucionalização. Diferentes pessoas compõem essa prática de cuidado em liberdade: acompanhantes, acompanhades, profissionais, familiares, conhecides e desconhecides, cujos corpos se veem atravessados tanto pelos estigmas da loucura e do capacitismo quanto por relações de raça e gênero. Ao acompanhar mulheres no ATnaRede, escutamos trajetórias similares entre si, fatos recorrentes, repetições que não constituem uma ocasionalidade individual, mas um reflexo do sexismo operante. Os espaços que deveriam proporcionar-lhes acolhimento seguem reafirmando lógicas manicomiais que imputam à mulher a imagem de frágil, casta, emotiva, culpada. Sabemos que o corpo feminino é invariavelmente expropriado em função de outros e para outros, como se o exercício do cuidado lhe fosse imanente, naturalizado, manifestando-se, de forma compulsória e gendrificada, nos seus relacionamentos familiares, na maternidade e na sua sexualidade. Percebemos, porém, que, para as mulheres loucas, algumas performances de gênero são-lhes imputadas de modo ambíguo, em uma lógica de cuidado-controle colonial que as infantiliza. Assim, a maternagem, tornada compulsória para as mulheres em geral, é, porém, interditada para aquelas tidas como loucas. Do mesmo modo, o romantismo de seus relacionamentos e a expressão de seus desejos sexuais, embora próprios à concepção corrente de feminilidade, são percebidos como exagerados, da ordem da perversidade e da imoralidade. São responsabilizadas socialmente por situações designadas como trabalho de gênero, mesmo se, curateladas, perdem sua capacidade de escolha e decisão – um paradoxo de atuação e passividade. As mulheres que acompanhamos foram, historicamente, com a leniência do Estado, estupradas, mortas ou trancafiadas em hospitais psiquiátricos por desvios da norma feminina. Acompanhando-as, identificamos práticas em instituições que perpetuam lógicas manicomiais e misóginas; são marcadas pela loucura, têm suas falas desqualificadas. Colocamos nossos corpos, nossos ouvidos, à escuta e, dado que narrativas singulares podem remeter a experiências coletivizadas, propomos a discussão, em uma perspectiva interseccional, do impacto das relações de gênero nas vivências de sofrimento dessas mulheres e na forma como esse sofrimento é lido socialmente, como loucura a ser tratada. Usando a narrativa ficcional a fim de problematizar o campo de pesquisa da Psicologia Social e operar na complexidade do objeto em análise, construímos histórias baseadas nas mulheres acompanhadas. Essas histórias são, parte baseadas nas acompanhadas, parte inventadas, em uma encruzilhada de redes que cria cumplicidade. Não se trata de fazer afirmações referentes a acontecimentos ocorridos, mas de colocá-los em questão. Entendemos que o AT abriu espaços de escuta e reconhecimento das violências sofridas, possibilitando a essas mulheres se perceberem como sujeitas na sua integralidade, merecedoras dos seus direitos. Ao ficcionalizar suas vidas, reinventamos realidades, reafirmando seus modos de resistência e produzindo visibilidades para suas histórias (reais).