Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Privilégio tributário, racismo e saúde
Laurenice de Jesus Alves Pires

Última alteração: 2022-02-03

Resumo


Esse resumo tem por objetivo refletir sobre o impacto da tributação para o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde brasileiro. Tendo como referência o texto de Ocké-Reis (2018) e com base nos dados do recém lançado site Privilegiômetro Tributário mostramos brevemente como a tributação pode ser um privilégio, como esse privilégio onera o SUS, como ele poderia ser fortalecido com um uso direcionado para esse fim, e como a população que ganha menos, leia-se mulheres e homens pretos, é quem paga essa conta.

O Estado brasileiro assumiu constitucionalmente a saúde como um dever seu e um direito do povo, sem distinção de sexo, de raça, de religião ou de ideologia. No entanto, se de um lado há um compromisso legal, ético e moral do Estado em responder às demandas de saúde de sua população, o que requer investimento na qualificação de toda estrutura capaz de garantir o cuidado universal, integral e equânime, por outro lado, esse mesmo Estado precariza o sistema público ao apoiar e financiar o avanço do que deveria ser complementar, mas tem se tornado cada vez mais central na agenda nacional política e financeira da saúde.

Essa controvérsia entre investir na saúde pública ou na saúde privada, reflete uma questão histórico-mundial onde a defesa da saúde como direito versus saúde como mercadoria está posta. Mesmo em um sistema legalmente universal como o brasileiro, observamos cotidianamente ações governamentais que caracterizam o seu enfraquecimento e o “desinteresse geral pela preservação e até pelo aperfeiçoamento dos serviços de saúde governamentais existentes.”

 

No Brasil, assim como em outros países no mundo, os gastos privados com saúde estão incluídos na categoria gasto tributário, que “são gastos indiretos do governo realizados por intermédio do sistema tributário, visando atender objetivos econômicos e sociais, reduzindo a arrecadação potencial. Isso significa que pessoas físicas e jurídicas podem abater, sem limites (!), seus gastos com saúde privada no Imposto de Renda. Considerando que somente um grupo social com maior renda é capaz de consumir saúde privada e ainda deduzir esses gastos do Imposto de Renda, essa possibilidade caracteriza uma vantagem desse grupo de pessoas e de empresas, em detrimento de grupos menos privilegiados: a) os que pagam por saúde, mas não tem renda para declarar e ser restituído e, principalmente b) os que não têm renda para ter acesso à saúde privada e dependem única e exclusivamente do SUS.

 

A carga dessa renúncia fiscal não investida no SUS recairá com maior força sobre a população SUS - dependente, que tem maior representatividade da população negra (pretos e pardos). Dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2019 mostram que neste ano, “20,1%, 21,4% e 38,8% das pessoas pardas, pretas e brancas, respectivamente, possuíam algum plano de saúde, médico ou odontológico” e que “quanto maior o nível de escolaridade maior é a cobertura do plano, variando de 16,1% (sem instrução ou com ensino fundamental incompleto) a 67,6% (nível superior completo)”.

A Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (UNAFISCO) chama de privilégio tributário “gastos tributários – oriundos da omissão na criação de tributo constitucionalmente previsto e das isenções, anistias, remissões, subsídios, benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia – concedidos a setores ou parcelas específicas de contribuintes, sem que exista contrapartida adequada, notória ou comprovada por estudos técnicos, para o desenvolvimento econômico sustentável sem aumento da concentração de renda ou para a diminuição das desigualdades no País.”

Em 2020 foi lançado pela Associação o Privilegiômetro Tributário, um site para divulgação do quanto o Governo Federal deixou de arrecadar. Até o final de 2021 será concedido R$ 315 bilhões em privilégios tributários somente na esfera fiscal, no Brasil.

Vale observar que mesmo em um grupo crítico do sistema tributário brasileiro como o UNAFISCO, a centralidade do SUS parece minimizada. No conjunto dos cinco principais privilégios considerados pelo grupo: i) isenção de lucros e dividendos distribuídos por pessoa jurídica; ii) a não instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas; iii) Simples Nacional (faturamento >1,2 milhões); iv) Zona Franca de Manaus e v) Programas de parcelamentos especiais - efeito direto e indireto; as despesas médicas não aparecem como privilégio. Ao contrário, elas aparecerão no conjunto dos gastos caracterizados como “não privilégio”, ou seja, os que apresentam retorno para a sociedade, justificado pela falta de investimento público na saúde, sem considerar que esse retorno só atinge uma parte da sociedade, deixando a maior parte de fora. O SUS socializa parte dos custos do setor privado na medida em que os usuários desse setor acessam duplamente o sistema, tendo acesso privilegiado, por exemplo, à alta complexidade, uma vez que realizam os exames com maior rapidez conseguindo assim acessar com maior rapidez o serviço. Essa realidade fiscal também fragiliza sob várias dimensões a sustentabilidade do SUS, impactando na renda dos trabalhadores, de suas famílias e seus idosos, tanto quando precisam pagar o plano de saúde como quando dependem de um sistema de saúde precarizado.

A aproximação de estudantes, pesquisadores, planejadores e gestores tanto no campo da saúde quanto no campo da economia com os campos de conhecimento da avaliação de políticas, financiamento do SUS e economia da saúde colaboram para a ampliação da capacidade analítica do cenário, para a proposição de novas respostas técnicas-políticas e maior qualificação para debates intersetoriais, como requer o campo da saúde. Além disso, um sistema tributário em que a saúde tem centralidade tem o poder de contribuir, por exemplo, para o avanço de políticas e debates sociais que induzam o consumo alimentos saudáveis (tributos menores), ou a adoção de práticas comportamentais e de mobilidade que sejam indutoras de saúde e do bem estar (maior taxação para a indústria automobilística), mostrando que o Estado pode usar sua “mão visível” para promover justiça social.

Um sistema tributário justo também é uma forma de enfrentamento ao racismo estrutural, uma vez que os custos de uma tributação injusta recaem sobre a população que ganha menos, grupo este representado no Brasil por mulheres e homens pretos e pardos.