Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Psiquiatria, Loucura e Racismo no Brasil do Século XX: Análise de Narrativas Autobiográficas em 'Diário do Hospício & O Cemitério dos Vivos' (1956), de Lima Barreto
Renan Vieira de Santana Rocha, Luís Augusto Vasconcelos da Silva, Wesley Barbosa Correia

Última alteração: 2022-02-23

Resumo


O presente trabalho deriva de uma pesquisa em nível doutoral na área de Saúde Coletiva, que objetiva compreender como se deu a correlação entre psiquiatria, loucura e racismo na oferta de cuidados em saúde mental ao longo do século XX no Brasil. Para tanto, parte-se da análise da escrita de relatos de usuários de saúde mental sobre intervenções a que estes foram submetidos dentro de instituições asilares, em que se destaca o relato contido na obra “Diário do Hospício & O Cemitério dos Vivos” (1956), de Lima Barreto. Lima Barreto é escolhido, prioritariamente, por ser considerado, talvez, um dos primeiros homens negros brasileiros a ter escrito sobre a realidade de um hospital psiquiátrico no Brasil, quando de sua internação no Hospital Nacional de Alienados, um manicômio instalado em terras adquiridas pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, por conta de um agravamento de seu quadro de consumo abusivo de álcool. O método implicado na pesquisa é o de Análise de Narrativas Autobiográficas, conforme se vê em Fritz Schütze, intentando observar quais pistas o relato de Lima Barreto nos fornece para uma leitura sobre as práticas de cuidado à loucura desenvolvidas no século XX, marcada e demarcadamente atravessadas pelas perspectivas eugenista, racista e manicomial de construção de práticas em saúde. Enquanto resultados preliminares, alguns pontos são interessantes de serem, aqui, apresentados. Por exemplo, não se pode afirmar, categoricamente, que estas vivências de Lima Barreto o conduziram aos percalços com os quais se deparou em vida, especialmente a partir de 1914, quando, por seu consumo abusivo de álcool e por possíveis sinais de depressão, experienciou a sua primeira internação psiquiátrica. Todavia, tais percalços somam-se a um todo de análises que o próprio Lima Barreto parecia produzir, em suas obras, sobre a vida no Brasil do início do século XX. Ele, homem negro em uma sociedade ainda eivada pela estrutura racista e racializada que viria a sustentar a conformação do Estado e da população brasileira, foi vítima e testemunha ocular de um modo de organização de nossa sociedade que se forjara para apagar os pobres, as mulheres e os negros, na medida em que pavimentava o caminho da riqueza e da produção das elites brancas nacionais. Viu, contudo, ainda mais de perto estes processos quando de suas internações, vivências estas que o levaram à escrita da obra que, neste estudo, mais queremos nos entranhar: o “Diário do Hospício & O Cemitério dos Vivos”. Algumas das mais precisas críticas produzidas por Lima Barreto em sua escrita sobre as questões da saúde dá-se no campo da crítica à chamada “cultura do doutor” e ao que, hoje, nominamos como “pensamento moderno ocidental”. Muito embora a sua crítica fosse bastante direcionada às questões da ordem social, econômica e política vigente, esta mesma crítica vinha acompanhada de uma atenta leitura sobre como as questões raciais estavam interpostas nesta mesma ordem; e, mais ainda, havia uma ponderação premente sobre como as questões da raça não se podiam desconsiderar na leitura da sociedade brasileira e das suas instituições nacionais, ponderação que salta aos nossos olhos na obra “Diário do Hospício & O Cemitério dos Vivos”; obra esta, em verdade, dupla, e onde Lima Barreto debruça-se sobre a sua experiência (ou experiências, se já o quisermos adiantar) de internação psiquiátrica, mas que foram publicadas apenas post mortem, conjuntamente, em 1953. Sobre estas passagens pelo hospital psiquiátrico, convém apresentar ainda outros mais resultados preliminares. Lima Barreto foi internado, por duas vezes, no Hospital Nacional de Alienados, manicômio instalado em terras adquiridas pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, na antiga Chácara de Vigário Geral, na Praia Vermelha, cidade do Rio de Janeiro. A primeira internação dele, como já dissemos, ocorreu em 1914, e a segunda entre 25 de dezembro de 1919 e 02 de fevereiro de 1920. Nesta segunda internação, sobretudo, o escritor dedicou-se à produção de um registro detalhado, narrando sua própria história e passagem pelo local, escritos em que critica a medicina dita “moderna” e produz um verdadeiro testemunho da vivência de ser um homem negro e tomado como “louco” no Brasil; relato a que ele intitulou, por conseguinte, como “Diário do Hospício”. Sóbole desta primeira produção, Lima Barreto parte, ainda, para um segundo registro, mais literário e, a priori, “fictício” (ou não declaradamente autobiográfico), onde descreve e reflete, em prosa (ou narrativa), a vivência dentro de um hospital psiquiátrico; prosa esta, inacabada, a que ele intitulou como “O Cemitério dos Vivos”. Nestas obras, Lima produz uma interessante crítica social, evidenciando, em seu olhar, a existência de um sistema opressor ante a população e que muito bem se metaforiza na expressão do que deveria ser o “cuidado” às pessoas “alienadas” ou “loucas”, mas que acaba revelando-se como algo sobremaneira humilhante. Diz-nos o autor que esta humilhação se inicia desde o transporte do paciente ao hospital, quando este é levado de maneira violenta por um camburão apertado, sem qualquer tipo de suporte e sem conhecimento exato de para onde está sendo levado, o que elicia, inclusive, o olhar de curiosidade daquelas e daqueles cidadãos que, de fora do contexto, assistem à cena dantesca. Mais ainda, Lima Barreto chega a descrever a chegada ao hospital, onde notamos novamente a profunda crítica à lógica manicomialista alienante produzida a partir do hospital psiquiátrico enquanto uma lógica social de lide com as pessoas tidas como “loucas” que se mimetiza na descartabilidade destes sujeitos, em verdade, desconsiderados sequer enquanto vivos. É deste ponto que Lima Barreto classificará esta instituição e toda a sua lógica de “cuidado” com um título deveras meritório: o Hospital de Alienados é, em verdade, um “cemitério de vivos”. Longe de propor, neste momento, conclusões definitivos, neste trabalho em específico, que ainda se encontra em execução, procuramos provocar quais lugares foram reservados ao pensamento psicológico nacional na obra de Lima Barreto, de forma a que esta pesquisa possa, então, balizar a análise de nossas práticas profissionais em Saúde Mental na atualidade, evitando a repetição de erros do passado, e provocando a produção de práticas em saúde mental que se proponham, efetivamente, antimanicomiais e antirracistas.