Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A Branquidade e a (Des)Racialização do Estado Brasileiro: Retratos da Desigualdade nas Políticas Públicas de Saúde e Assistência Social
Renan Vieira de Santana Rocha, Beatriz Borges Brambilla

Última alteração: 2022-02-24

Resumo


Este estudo intenta, a partir de diálogos teórico-críticos, tecer considerações sobre a conformação de um Estado estruturado na política de branquidade no Brasil, compreendendo, inclusive, que são estes os caminhos que fazem do racismo um fenômeno, em essência, de brancos – afirmação introdutória à qual ainda que seja, ao mesmo tempo, contundentemente negada, apresenta-se como inegavelmente concreta e constantemente (re)atualizada no cotidiano das relações – e, de forma ainda mais estruturada, da organização do Estado moderno-colonial. Propõe-se evidenciar as contradições da (des)racialização do Estado e do povo brasileiro, bem como os efeitos deste fenômeno às políticas públicas de saúde e assistência social, e afirmar que exemplos sociais, culturais, históricos, políticos e econômicos não nos faltam para demonstrar que as expressões desta política de branquidade ainda se fazem presentes na realidade brasileira – o que, atrevidamente, ensejaremos, aqui, desescamotear. O Estado moderno, representação da democracia liberal, seletiva, arbitrária e penal, per si, ampara-se na política racista de segregação, desigualdade e extermínio. Um Estado representante da supremacia branca que forja nossa estrutura social, subalternizando não brancos, através de um conjunto de violências: estruturais – com ausência de direitos; culturais – com inferiorização, falta de representatividade e atribuição de subcivilidade; e institucionais – com o controle militar e policial. Tal cenário se expressa cotidianamente em nossas vidas, traduzido em indicadores sociais, retratos da desigualdade social brasileira, expressão da política de Estado e governo em nosso país, praticamente como em um autorretrato da Colonialidade, demandando de nós uma análise um pouco mais detida. Do direito à terra e à moradia, por exemplo, constata-se que a maior concentração de riquezas no país é relativa a patrimônio não financeiro, como terras, imóveis e outros bens. No entanto, os povos indígenas convivem com novas formas de grilagem, com medidas de cerceamento do direito à vida/terra; enquanto os dados do último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), por sua vez, apontam que as chances de uma pessoa preta ou parda residir em um aglomerado subnormal eram mais do que o dobro da verificada entre as pessoas brancas. Quanto ao direito à renda e à Assistência Social, por sua vez, a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, também do IBGE, publicada em 2018, aponta para a série histórica de diferença de rendimentos, indicando uma média mensal das pessoas ocupadas brancas 73,9% superior ao das pessoas pretas ou pardas. Já o último Censo do IBGE, citado acima, demarca a situação de povos indígenas, onde 52,9% não tinham qualquer tipo de rendimento, proporção ainda maior nas áreas rurais (65,7%). Em termos da pobreza no Brasil, já destacadamente negra e feminina, segundo o relatório “Mulheres no SUAS”, produzido pelo Departamento de Gestão do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), em 2018, constata-se que há quase 14 milhões de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF) cadastradas no CadÚnico, sendo que mais de 90% dos responsáveis familiares são mulheres e 75%, entre elas, são mulheres negras. No tocante à situação dos povos indígenas, deve-se considerar que em nosso país há pouco mais que 800 mil indígenas autodeclarados, dos quais 116 mil encontram-se cadastrados no PBF e recebem seus subsídios, seja mensal ou trimestralmente, e tais subsídios se colocam como importantes fontes de renda para alimentar a todos das famílias atendidas. No entanto, há de se observar que uma maioria expressiva não tem acesso ao benefício, especialmente por conta das condicionalidades, do acesso à saúde e à educação – o que, como continuaremos a ver, constituem-se em sequências de violações de direitos e impedimentos. Já do direito à saúde – muito embora os dados do Boletim de Desigualdade Sociais por Raça ou Cor (IBGE, 2019) restrinja a discussão sobre saúde a dados de violência (homicídios e mortalidade da população negra) – em Boletim Epidemiológico divulgado no ano de 2015, pela Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde (SVS/MS), aborda-se diretamente a contribuição da análise de Indicadores de Vigilância em Saúde, segundo a variável raça/cor. A interpretação dos dados em questão nos possibilita enxergar o quanto a estrutura racializada e discriminatória de sociedade acaba por impor lógicas ao direito à vida e à saúde de parcelas substanciais da população brasileira; ponderações às quais não podemos simplesmente recusar ou refutar. Estes dados nos levam à conclusão, como apontado pelo próprio documento citado, que as diferenças encontradas podem estar relacionadas não somente com a saúde, mas com outros determinantes que sobre ela exercem impacto direto, como educação, renda e cultura, entre outros. Por assim o ser, acabam por dar à questão do racismo na saúde status de problema em âmbito nacional, e que afeta de maneira direta grande parte da população brasileira – o que nos permitirá, em última instância, dizer que se trata, também, de um problema de saúde pública. E, ainda pensando a partir da saúde, embora tenhamos conquistas, frutos diretos da luta organizada da população indígena e negra, e atualmente tenhamos, p.ex., a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, estas revelam-se ainda insuficientes para assegurar a estas pessoas o efetivo direito à saúde. Por todos estes dados apresentados, o que vemos é que o perverso e intencional ciclo de políticas racistas, representadas na naturalização do poder e da ação da branquidade, como mencionado, está no cotidiano, na vida, nos indicadores, nas dores, na segregação, na negação de pessoas indígenas e negras, na meritocracia, no esforço pessoal (ao quadrado), incansável e insustentável na ordem do apagamento das determinações históricas e sociais de nossa realidade. Esta compreensão nos é muito cara, ao apontar que a existência do atributo raça/cor e de toda a sua gama de marcadores de diferenciação entre os sujeitos ainda não pode ser descartada, mesmo que este seja o objetivo final de alguns ativistas e teóricos do campo das Relações Étnico-Raciais. Isto não representa dizer que não se deseje romper com as amarras que essas categorizações auxiliaram a produzir ao longo da história; mas sim, que é preciso reafirmá-las, olhá-las de frente, encarar os estigmas e os acessos e inacessos por elas produzidos, para podermos avançar na construção de políticas efetivamente reparatórias. Se incorrermos no risco de desracializarmos as políticas, na defesa da inexistência das raças, incorremos no risco de defendermos a própria inexistência do racismo, especialmente em tempos de tão arraigado negacionismo global e nacional. A naturalização e a não nomeação das tentativas de desracialização do Estado brasileiro e de suas políticas como política da branquidade é um gesto que nos exige novas providências, enquanto povo, onde a de-volução social/racial aos povos negro e indígenas – entre outros expressões étnicas – faz-se, desta feita, urgente. De-volução social/racial como processo revolucionário de reparação efetiva das violências coloniais, atualizadas na produção da desigualdade em nosso país. Exige de nós uma ação coletiva, reconhecendo as distintas posições sociais, a racialização de toda a sociedade brasileira, a implicação de pessoas brancas – em diálogo com a branquitude crítica – e o enfrentamento à falsa democracia e à falsa igualdade no país.