Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Intensificação do cuidado na saúde do homem rural: relato de experiência de um caso em residência multiprofissional em saúde da família
Gustavo Guazzelli Nanni

Última alteração: 2022-02-06

Resumo


Este trabalho relata a experiência assistencial de intensificação de cuidados a um caso, enquanto psicólogo residente multiprofissional em saúde da família com ênfase na população do campo, em Unidade Básica de Saúde rural do Distrito Federal, da Escola de Governo Fiocruz.

Tem por objetivo narrar e analisar os efeitos das atuações realizadas junto a Linho (nome fictício), um homem branco, de 35 anos, em situação de rua em território rural, em insegurança alimentar, desempregado sobrevivendo de “bicos”, com quadro de epilepsia com prescrição de Carbamazepina 200mg, que faz uso abusivo de álcool e outras drogas.

Em junho de 2021, Linho procurou a UBS para retirada de pontos que estavam localizados em sua boca. Na fila de espera para o atendimento, ao iniciar diálogo com o usuário em questão, o psicólogo residente soube a causa do ferimento – episódio de convulsão –, o histórico do quadro, bem como sua relação com a rede de apoio familiar.

Na semana seguinte o usuário voltou a convulsionar, ocasião que o psicólogo residente pode acompanhar junto de amigos e familiares de Linho. Enquanto o usuário retomava sua consciência a família anunciava o desejo de realizar internação compulsória, referindo desgaste nas tentativas de cuidado e responsabilidade exclusiva do usuário pelos acontecimentos.

Ao analisar os registros de atendimentos realizados pelo usuário nos últimos anos, foi constatado que desde que o quadro de epilepsia se instalou, o usuário se tornou frequentador assíduo da UBS. No entanto, somente utilizava o serviço quando os episódios de convulsão ocorriam e demandavam cuidados paliativos.

Diante de uma rede de apoio fragilizada, da situação de vulnerabilidade social e de uma assistência em saúde paliativa, o psicólogo residente organizou junto à enfermeira da equipe mínima um programa de intensificação de cuidado do usuário, visando a ampliação das ofertas de cuidado em saúde, o tratamento em liberdade e a revitalização da rede de apoio.

O Programa de Intensificação de Cuidados (PIC) surgiu para se contrapor ao pensamento comumente presente de que, entre os que demandam assistência psiquiátrica, existem algumas pessoas que, em função da gravidade dos seus casos, precisam ser internadas, apostando diversamente nos investimentos de cuidados humanos como único recurso capaz de produzir transformações efetivas na vida dessas pessoas, manejando um conjunto de atitudes para que elas possam não precisar da internação. E, assim, instaura-se um debate entre a intensificação de cuidados e a necessidade do internamento: alguns pacientes necessitam de cuidados intensivos, uma vez que seus casos são muito graves e isso requer uma atenção diferenciada.

Durante sete meses foram realizadas distintas ações, aqui descritas como programa de intensificação de cuidados (PIC):

1)     Andanças pelo território - ao molde da Clínica Peripatética: conversações e pensamentos que ocorrem durante uma caminhada, em uma situação móvel por excelência, como ferramenta de vinculação destinadas a pessoas que não se adaptam aos protocolos clínicos tradicionais, ocorrendo fora do consultório, em movimento, mas ainda preservando um setting, ou seja, o cuidado ou preparo de um espaço facilitador da comunicação entre profissional e usuário. Linho desde o princípio ocupava o espaço limítrofe entre UBS e rua, local que se torna setting de diálogos terapêuticos, onde eram apresentadas suas necessidades mais imediatas, seu histórico de vida, as significações e pactuações estabelecidas no processo saúde-doença-cuidado.

2)     Acompanhamento em consultas e crises convulsivas, em hospitais: seja na rua, no quintal do terreno que habita, fui acionado pela rede de apoio para acolher Linho nos eventos de convulsão. O protocolo estabelecido em casos de convulsão é de encaminhamento ao hospital, para acompanhamento especializado diante da possibilidade de maiores danos orgânicos ao usuário, situações em que o acompanhei até o hospital, tendo em vista que sua rede de apoio não se mobilizava para o acompanhamento. Em outras situações, estas de encaminhamento para consulta com neurologista, também o acompanhei. Um dos pontos altos dessa ação ocorreu em uma consulta com neurologista, quando ainda na sala de espera, o usuário manifestou sinais de que iria convulsionar. A partir da enunciação de que não estava bem, fomos para a parte externa do hospital, ele se sentou e com toques em seu corpo e falas que objetivavam a presentificação na cena (p. ex.: onde estamos, como chegamos até aqui, o que viemos fazer, quem sou, etc), conseguimos evitar que a convulsão ocorresse.

3)      Apoio e entrevistas com familiares: conversas realizadas com alguns membros da família (mãe, padrasto e ex-esposa) e da rede de apoio expandida (tia por afinidade e pastor), visando a ampliação da biografia do usuário e o apoio a sua rede subjetiva.

4)     Construção de Projeto Terapêutico Singular: realizado em conjunto com a enfermeira da equipe mínima, o PTS de Linho previa as seguintes ações: a) acordo com a rede subjetiva de Linho para organização de revezamento semanal de alimentação, b) acordo com a rede subjetiva para acompanhamento da administração da medicação c) acordo com Linho e proprietário do terreno aonde ele dorme, para dormir dentro de imóvel desocupado, d) estudo de caso com a equipe e matriciamento com CAPS e neurologista da rede, e) diálogos abertos com a rede subjetiva de Linho, visando compreender como cada um se sente em relação aos problemas vivenciados pelo usuário. No que pese a proposta, o usuário não aceitou algumas partes do PTS, como os itens a), c) e e), pois sugeria não gostar de depender da ajuda de ninguém.

Neste período pode-se observar que o vínculo construído na relação com Linho possibilitou ao psicólogo residente tornar-se uma figura de referência ao cuidado, dentro da equipe da UBS. Ademais, a rede de apoio composta por amigos e familiares voltou a se implicar no cuidado com o usuário, mesmo que de maneira precária. Além do próprio usuário compreender a necessidade do autocuidado.

No entanto, alguns limites também precisam ser apontados: a abstinência, lógica cientifica e culturalmente reforçadas, não era uma finalidade, tendo em vista que um dos objetivos principais era o compromisso com a manutenção da vida; a aceitação e implicação do cuidado por terceiros e do autocuidado do usuário condicionada aos determinantes de gênero e classe; a condição de vulnerabilidade do usuário, expressas na falta de renda, de emprego e de moradia, como um problema que supera o setor saúde, necessita de políticas sociais de combate à desigualdade social, para que o cuidado em liberdade seja garantido em contrapondo à internação em instituições manicomiais.

Diante do exposto, pode-se afirmar que a intensificação do cuidado possibilita a reconstrução do itinerário de vida, mesmo que de modo parcial e precário. Ainda a característica territorial dos serviços da Atenção Primária à Saúde possibilita um contato cotidiano e próximo da população, o que no caso em particular confirma a potência da existência do serviço, ainda mais em um território rural, marcado pelo vazio assistencial e a distância dos grandes centros, que resulta na necessidade de as equipes de Saúde da Família criarem dispositivos de cuidado com os recursos disponíveis.