Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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UM OLHAR SOBRE A AMERICA LATINA: O PARADIGMA DO VIVER BEM E A INTERCULTURALIDADE EM SAÚDE
Agleildes Arichele Leal de Queirós, Paulo Capel Narvai, Italo dos Santos Rocha, André Luiz de Oliveira

Última alteração: 2022-03-02

Resumo


Existem no continente americano em torno de 45 milhões de indígenas pertencentes a mais de 800 povos originários diferentes. É indispensável, para compreender a atualidade, analisar as questões históricas relacionadas ao processo de colonização desta região, levando em conta a brutal devastação das civilizações pré-colombianas e a dominação dos seus povos. Os colonizadores utilizaram o genocídio étnico em diferentes países da América Latina como estratégia para dominar e explorar o povo e seu continente; dominação e exploração que se estenderam durante as repúblicas e que se mantém até os dias atuais por meio da segregação e exclusão étnicas e do racismo. Diante da desumanização da sociedade e da crescente desigualdade causadas pelo sistema capitalista e pela opressão dos homens, emergem na América Latina movimentos sociais e étnicos de resistência e luta política, denunciando a exploração e o imperialismo, e propondo um novo paradigma – o Viver Bem/ Bem Viver. Este arranjo societário tem raízes na forma de viver e de se relacionar dos povos originários com referência nos grupos indígenas: na Bolívia a denominação predominante é do grupo Aymara, o Suma Qamaña – Vivir Bien (em português Viver Bem); já no Equador é o grupo Quéchua que traz o termo Sumak Kawsay – Buen Vivir (em português Bem Viver). O objetivo deste relato é refletir sobre o paradigma do Viver Bem e discorrer sobre a cosmovisão dos povos originários e como ela aponta para novas concepções societárias e do cuidado em saúde, a partir da interculturalidade.

O interesse em compreender o conceito de Viver Bem surgiu durante o desenvolvimento da pesquisa de doutorado que abordou a temática do Agente de Saúde em seis países da América Latina: Bolívia, Brasil, Cuba, Equador, Peru e Venezuela. Durante o trabalho de campo o conceito de Viver Bem foi enunciado pela narrativa dos entrevistados, na perspectiva de explicar as práticas e o contexto de saúde. Elementos como a “interculturalidade” e o “plurinacionalismo” também estão presentes nessas narrativas. Diante da necessidade de compreender melhor esses aspectos, fez-se fundamental aprofundar o assunto e interrogar: o que é Viver Bem? Como o Viver Bem se expressa na prática do cuidar em saúde? E como este paradigma pode contribuir para as mudanças da determinação social da saúde? A pesquisa realizada teve como fundamento teórico-metodológico a dialética materialista. Ao considerar a dialética como propriedade da realidade, isso significa que tanto o seu ponto de partida, quanto as suas impressões iniciais precisam ser confrontadas com o concreto, que ocorreu durante a atividade de campo. O encontro com um cenário “novo” e o surgimento de questões e conhecimentos que não faziam parte do arcabouço analítico da pesquisadora, requereu um processo de sucessivas aproximações, à cosmovisão dos povos originários e aos aspectos que compõem o paradigma do Viver Bem. Um ponto marcante deu-se em um encontro com um xamã e duas parteiras no Equador, constam no caderno de anotações “eu preciso me despir do olhar acadêmico, da palavra cifrada, das perguntas respondidas. Sentir a história contada, escutar a vida e ler o sentimento. Estou totalmente desorganizada”.

Para os povos indígenas originários, a busca para resolver a crise contemporânea passa por mudança de paradigma, isso é, que as relações humanas, sociais e com a natureza passem a ser fundadas no equilíbrio. A partir dessa cosmovisão, os indígenas propõem pensar as estruturas e instituições políticas a partir de valores plurinacionais, incluindo aí o próprio Estado, lançando luz a um novo paradigma, o Viver Bem. A reivindicação dos povos indígenas da região latino-americana tem início a partir da cultura. Propõe a recuperação da identidade cultural e do folclore, além de afirmar a cosmovisão como diferente e não como atrasada. Este movimento ganhou nos últimos anos uma dimensão política, com a exigência de aspectos jurídicos e territoriais, iniciadas no Equador, depois Bolívia, Chile, Peru, Guatemala, Colômbia, Nicarágua, e no México com o Zapatismo. A mobilização e a perspectiva ideológica vêm se fortalecendo nos últimos anos e, em 2009, no Fórum Social Mundial que ocorreu pela primeira vez na região amazônica brasileira, os povos indígenas e os movimentos sociais em assembléia declararam que para fazer frente à crise mundial seria necessário criar alternativas anticapitalistas, antirracistas, anti-imperialistas, feministas, ecológicas e socialistas, atribuindo, assim, a destruição da vida ao capital e questionando o modelo de desenvolvimento e civilização vigente. Os povos e movimentos comprometeram-se na construção de uma sociedade baseada no paradigma do Viver Bem/Bem Viver, oriunda da cosmovisão dos povos originários, que convoca a reconstrução do equilíbrio sagrado, espiritual e societário de transformação da realidade. O desafio da saúde intercultural identificada na pesquisa, que aconteceu durante os anos de 2012 e 2013, onde governos da região, a exemplo da Bolivia e Equador discutiam a incorporação dos médicos tradicionais em ambientes de práticas ocidentais. E, em relação ao parto, a proposta é que ele seja culturalmente adequado e realizado em estabelecimentos de saúde. Neste sentido, a implantação de uma política intercultural precisa responder à diversidade cultural, sem subordinação. E, para tanto, é fundamental criar espaços participativos, que tenham como protagonistas os terapeutas tradicionais e a própria população.

O paradigma do Viver Bem reconhece que para interpretar o mundo é necessário considerar a cosmovisão, o referencial histórico, a tradição e o sagrado. Compreender a natureza como parte e não como meio de produzir e reproduzir a vida. Viver Bem propõe o resgate dos valores ancestrais e comunitários, a reconstrução do equilíbrio sagrado, espiritual e societário de transformação da realidade, reacendendo a acreditação na construção de uma sociedade mais justa e feliz. Nesse sentido, para aplicar os ensinamentos do Viver Bem será necessário um processo de descolonização, que desmonte as estruturas do Estado colonial e dê passos para esta nova sociedade. Para tanto, será preciso novos conhecimentos e parâmetros de desenvolvimento, rever os princípios e os aspectos estruturais, históricos e normativos e aposta na “interculturalidade” e na “plurinacionalidade” como estratégias de superação da conotação evolucionista e euro-centradas, com o desafio de sair da dicotomia entre ser humano e natureza e despertar a consciência de que somos parte da Pachamama, da Mãe-Terra e com ela nos complementamos. Na perspectiva de construir uma nova sociabilidade é necessário avançar nos mecanismos de proteção social e garantir que certas necessidades, chamadas secundárias, sejam apoiadas pelo Estado, por meio de serviços públicos. Sendo assim, o cuidado deveria ser garantido como um direito fundamental e estruturante para que se possam transformar as condições institucionais e sociais em efetivo exercício de direitos humanos. O Viver Bem prega a defesa da vida em comunidade e a harmonia com a natureza, que deve ser contextualizada com as estruturas econômicas, políticas e culturais a partir de princípios plurais e heterogêneos. O paradigma assume a valorização das concepções e experiências dos povos originários e aposta na construção e na reorientação das relações societárias e também das políticas de saúde sob a matriz da pluralidade e da interculturalidade.