Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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JORNAL DO CAPS: ESCRITAS DA CONVIVÊNCIA
Allan de Aguiar Almeida, Maria Goretti Andrade Rodrigues, Fernanda Martins de Almeida

Última alteração: 2022-02-06

Resumo


A Oficina Terapêutica do Jornal do CAPS acontece no Centro de Atenção Psicossocial Ilha da Convivência, em Santo Antônio de Pádua, noroeste do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. É uma atividade que visa a confecção de um Jornal de livre circulação, escrito, produzido e vendido pelos próprios usuários e publicado também online.

Etimologicamente, oficina é um termo utilizado para designar um lugar onde se exerce um ofício, ou onde se guardam os utensílios de uma indústria ou de uma arte. No sentido figurado, oficina significa o lugar onde se dão transformações. Desse modo, pelo campo da Saúde Mental podemos pensar “oficinas” como espaços processuais, onde o ocupar-se transforma modos de vida, emprestando funções e sentidos às existências de sujeitos.      Quanto a esta forma do fazer em saúde mental, questionamos sobre o caráter que nossa oficina possui: Mera ocupação? Trabalho alienado? Local de fala? Lugar de produção material? Lazer? Afinal o que é uma oficina? Obviamente essas perguntas nos convocam a pensar.

O complexo campo da saúde mental convida a soluções e alternativas diferentes àquelas que nos são oferecidas pelos dispositivos tradicionais da psiquiatria, da psicologia, da psicofarmacologia e de outros tantos saberes. Por isso, as oficinas podem ser dispositivos capazes de acolher e suportar possibilidades expressivas que, até então, não eram apreendidas pelos métodos tradicionais de tratamento, acompanhamento, intervenção clínica e produção de arte.

O funcionamento das oficinas é umas das questões discutidas pelo movimento da Reforma Psiquiátrica tendo em vista que elas também podem servir como modos de se domesticar e naturalizar a estranheza da psicose, produzindo um otimismo humanista e reconfortante. Podendo, assim, reproduzir os retrógrados esquemas manicomiais, impondo um trabalho alienado que só produz adoecimento, ao invés de saúde mental. Por isso é necessário rever e repensar constantemente nossas propostas e práticas cotidianas, para não corrermos o risco de cair numa nova forma da velha institucionalização, criando outros e mais personagens cronificados na atenção psicossocial.

O objetivo do trabalho em tela é apresentar a Oficina Terapêutica do Jornal do CAPS e suas reverberações ancoradas na psicanálise e nos pressupostos da Reforma Psiquiátrica.

A 1ª Oficina de Jornal do CAPS Ilha da Convivência surge a partir de uma usuária, Tânia, a quem redemos homenagem (in memoriam). Possuía um jornal na cidade, e a primeira impressão foi aos seus cuidados, ainda na década de 1990. Em 2006 a Oficina tomou outra configuração, e hoje atravessada pela pandemia, teve e tem o formato de livre demanda, com a criação de um comum pelo coletivo em encontros semanais. O acesso é aberto aos usuários do CAPS, familiares, estagiários e profissionais. Os encontros duram cerca de uma hora e meia e as reuniões, na maioria das vezes,  coordenada por psicólogos e assistentes sociais, contam com a intervenção de estagiários de psicologia, enfermagem e serviço social, além de usuários e alguns familiares.

Apostamos que o sujeito se produz como efeito do trabalho clinico, que se produz cada vez que toma a palavra e do momento em que esta pode ser acolhida enquanto tal, ou seja, partindo de que esta palavra corresponda a uma escuta e uma intervenção que vem a localizar o sujeito em seu laço social.

Podemos afirmar que tanto a reforma psiquiátrica como a psicanálise apostam em um sujeito na psicose, seja este sujeito o sujeito psicológico, o sujeito cidadão, o da ação social ou mesmo o sujeito do inconsciente. A partir da década de 70 com as intervenções ocorridas na ordem político-social, a questão da cidadania surge no âmbito das discussões frente aos movimentos de reformas e reivindicações sociais, naquilo que diz respeito ao sofrimento mental circundando-se assim a assistência psiquiátrica, política, jurídica, cultural e suas relações com a questão da loucura.

Já se pensou em três referenciais principais no que toca a reforma brasileira: a desistitucionalização, a reabilitação psicossocial e a clinica institucional.

A desistitucionalização vem negar não só a instituição hospital psiquiátrico mas a instituição “doença mental”, desconstruindo tais formas, rompendo-se com os paradigmas clínicos e trabalhando a existência do paciente, suas relações com o corpo social promovendo novas formas de viver e convívio na cidade. Através de artifícios terapêuticos como as oficinas, elemento delineador deste trabalho, podem surgir a escrita, a pintura, o artesanato, a escultura e outras tantas formas de arte e expressão que vem promover a cultura e elos mais fortalecidos com o social.

A idéia de reabilitação vem com o ideal de que tratar é recuperar a competência social, mesmo que vindo com um discurso pedagógico para a vida social, ao passo que a clinica institucional visa fazer da instituição um lugar de laço social. Para além desse tipo de prótese de sociabilidade, a perspectiva de uma clínica ampliada aponta o território e nos faz ver a importância do lugar que habita para a pessoa e os laços ali possíveis, para aqueles que possuam tais laços desfeitos ou de certos modos rompidos. Os laços construídos nos encontros para o processo de criação do jornal, as possibilidades de transformação subjetiva com as vias de expressão nesse canal, e o circular pela cidade de um outro lugar de acolhimento para o sofrimento mental que não a medicalização, se faz como via importante do trabalho de cuidado.

Trabalhamos na transformação do campo psiquiátrico através daquilo que chamamos por “atenção psicossocial”, vindo contra a demissão subjetiva induzida até então pelos retrógrados sistemas manicomiais, situando o tratamento na questão da existência e propondo de certa forma que a questão psiquiátrica dê lugar às concepções de sujeito, de cidadão.

As oficinas estão para além de uma forma de entretenimento, estão acima de uma mera ocupação do tempo institucional. São espaços do fazer e do pensar, frutos do discurso, de inscrições de obras de sujeito, que servem para colher e sustentar possibilidades outras, criando condições efetivas para uma resignificação existencial. Por isso, nosso trabalho é contínuo e sustenta que a subjetividade, cidadania e ética são dimensões que não podem deixar de estar entrelaçadas no fazer cotidiano.

Pensamos a escrita como o resultado do ato de escrever, de transformar, de se abri ao outro, de conhecer e de ser conhecido, espaço de tocas de ressignificação e rehistoricização, para além de leis gramaticais e alfabéticas. A escrita assim pode ser tomada como um exercício, um processo que não está fixo por limites, que trás à tona a fugacidade e o criar-se enquanto sujeito, não tomados por um ideal de uma ortografia.

Nos textos há sempre um deslizar da escrita, há um continuo das palavras que não são últimas, dado que os sujeitos sempre têm algo a dizer e a registrar para si e para os outros. Escrevendo ou lendo apreende-se que a escrita, assim como a fala, serve para além de uma catarse: os textos, as poesias, as piadas, as notícias, as histórias e as outras produções do Jornal do CAPS dizem bem disso, de uma jornada inscrita no cotidiano.