Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Trajetórias de Trabalhadoras Negras do HU Antônio Pedro/UFF e Suas Inserções nos Processos de Educação Permanente Em Saúde
Rita de Cassia Corrêa da Silva, Mônica De Rezende, Leandro Augusto Pires Gonçalves

Última alteração: 2022-02-04

Resumo


O projeto de pesquisa apresentado neste trabalho ambiciona ser uma confluência entre a Educação Permanente em Saúde e os Estudos Decoloniais. Nele está sendo desenhada a construção de uma escrevivência, fincada no cotidiano da produção do cuidado em saúde, dentro de um Hospital Universitário e a partir de processos educacionais onde trabalhadoras das equipes de assistência direta aos pacientes em exercício na unidade, especificamente mulheres negras se inserem.

A pesquisa é sobre Educação Permanente em Saúde, entendida aqui como na Norma Operacional Básica de Recursos Humanos de 2005 – dentre outras maneiras, como processo permanente para aquisição de informações pelo trabalhador por meio de escolarização formal ou não formal, de vivências, de experiências laborais e emocionais. Também é sobre a transformação das práticas profissionais baseada na reflexão crítica sobre as práticas reais, de profissionais reais.

Nessa construção, as categorias Trabalho e Feminismo Negro trarão o subsídio necessário para contar experiências e reflexões sobre a Educação Permanente em Saúde, trabalhadoras negras que sejam participantes da cadeia de construção de conhecimentos do Hospital. A pretensão é elaborar o encontro entre as inquietações cultivadas no viés educacional que permeia o trabalho e o debate teórico que trabalha a desconstrução de padrões hegemônicos e discriminatórios que estão na base das relações em sociedade, inclusive nas microrelações existentes no território hospital. Este encontro será narrado através do olhar afro-centrado de uma mulher preta, acadêmica, que tem sua origem em espaço popular, trabalhadora da saúde em um Hospital Universitário; olhar este que foi forjado na ligação com movimentos sociais que discutem a inserção dos negros nesta sociedade hierarquizada e nos estudos e reflexões essenciais para a compreensão desta mesma sociedade.

As interrogações trazidas para este estudo e que moldam o desenho da pesquisa começaram a surgir após questionamentos sobre as maneiras como a EPS é implementada em diferentes espaços. Reflexões sobre as interpretações distintas sobre o que é realizar uma educação permanente nos moldes da Política. As questões partiriam de como eram realizadas as ações que podem emancipar e valorizar os trabalhadores, em como estas ações eram recebidas e se, ao mesmo tempo, cumpriam o seu papel como ferramenta de gestão e de interligação com os usuários na visão dos participantes que fossem selecionados para a pesquisa.

Os questionamentos possuíam em sua raiz os modelos escolares verticalizados, comumente usados na execução da Política. Este modelo, que ignora as caraterísticas do público institucional a ser atendido, institui como capacitação e qualificação conteúdos que muitas vezes repetitivos, não conversam entre si e muito menos com o cotidiano da instituição. Essas ações vêm dentro da lógica do que bell hooks identifica como sistema de educação bancária, ou seja, realizadas dentro de um pressuposto de que a memorização de informações e sua posterior regurgitação representariam uma aquisição de conhecimentos que podem ser depositados, guardados e usados numa data futura e indefinida.

Apurando os questionamentos, e seguindo pelo caminho da recepção dos trabalhadores às ações de formação, foram surgindo os recortes que levaram o projeto a tomar este feitio: ‘como os diferentes grupos se inserem dentro dessas ações educativas?’ A recepção, ou melhor, a aceitação é a mesma se usarmos marcadores como sexo, gênero, raça, escolaridade, origem? Haverá diferenças se observamos os grupos de maneira específica ou será necessário combinar os marcadores sociais para um melhor panorama?

Para além do pensamento crítico, foi possível perceber que era necessário voltar o olhar para os aspectos da sociedade brasileira que marcam e colocam indivíduos em patamares desiguais por conta de raça, gênero, sexualidade, religião, escolaridade, origem social. É inegável que, se nossa sociedade está permeada por estes aspectos desde seus primórdios, dificilmente suas reproduções não seriam encontradas no espaço hospitalar.

Se o território hospital está sujeito aos mesmos atravessamentos da coletividade, pois é um microcosmo representativo da nossa estrutura social, é possível afirmar que (pré)conceitos que fazem parte da estrutura societária podem se reproduzir, aberta ou veladamente, a partir das formas de pensamento e atuação das distintas pessoas que compõem esse território? Em outras palavras, podemos identificar se marcadores como ética e comprometimento podem se manifestar na mesma proporção de racismo e relações hierarquizadas pelo poder? Pensando sobre a EPS dentro da unidade hospitalar, é possível identificar os aspectos transformadores e emancipadores dos sujeitos dentro das relações sociais criadas neste espaço? Ou, pelo contrário, os aspectos que se destacam são os de uma Educação que perpetua os instrumentos de dominação e subalternidade presentes?

Mulheres negras geralmente são as mais invisibilizadas em seus afazeres rotineiros, sejam profissionais ou não. Esta condição também se reproduz no cotidiano hospitalar? Onde estão as mulheres negras dentro dos processos educativos, ou nos espaços de produção e transmissão de conhecimento dentro do hospital? Essas indagações estão guiando a pesquisa, e permitindo compor o referencial teórico o arcabouço do trabalho.

Para ouvir essas trabalhadoras e suas narrativas através das suas histórias de vida, dando ênfase às suas trajetórias e inserções nos espaços de trabalho. Tais narrativas serão apresentadas em formato de escrevivência, que é método de investigação, de posicionalidade, mas também visa propagar vozes insistentemente caladas por outras narrativas, nascendo do ser mulher negra na sociedade brasileira. A ferramenta analítica para esta construção acadêmica é a interseccionalidade, no intuito de abarcar as vivências às quais essas trabalhadoras estão submetidas.

No movimento de escuta das narrativas buscadas, a tentativa é de capturar as resultantes estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos que podem envolver a subordinação e hierarquização de conhecimentos, esperando também encontrar, na sobreposição entre os marcadores de gênero e raça, elementos que possam embasar o debate sobre qual o lugar ocupado pelas trabalhadoras negras na cadeia de transmissão de conhecimento dentro da estrutura hospitalar. Por ser uma construção dialógica, com base na interseção entre a prática profissional e a criação cotidiana de conhecimentos, nesta pesquisa o binômio prática profissional-construção habitual de conhecimentos estará pensado enquanto produtor/catalisador de saberes, trazendo estas vivências para o campo da reflexão e transformando-as em aliadas na narrativa que pretendo demonstrar.

A relevância deste trabalho é a intenção de pensar nos atravessamentos que podem permear os processos educacionais cotidianos de uma Unidade de Saúde, e isto envolve pensar no sentido do conhecimento que está sendo transmitido, a que e a quem ele serve, e quais os marcadores sociais podem se interpor nestes processos. Também envolve identificar suas personagens, suas participações e protagonismos, considerando em suas vivências um campo fértil para a transmissão dos conhecimentos adquiridos no campo laboral.