Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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De Memórias e Outras Fontes – Alguns Olhares Pessoais sobre a Pandemia
Rita de Cassia Corrêa da Silva

Última alteração: 2022-02-24

Resumo


Apresentação: Este trabalho consiste num resgate de minhas memórias registradas ao longo da pandemia de Covid-19, onde através de anotações realizadas em uma espécie de diário, revisito algumas manchetes de portais e jornais durante o período. Desde as confusas informações iniciais, dando conta da gravidade da descoberta e seu potencial de contaminação, me ocupei de entender os acontecimentos e que momento se desenhava diante de meus olhos. E se o pano de fundo é a pandemia, o cerne da minha atenção recaía quase sempre sobre as manchetes cujas reportagens envolviam, em algum trecho, mulheres pretas.

Minhas compreensão e capacidade de análise (desenvolvidas em estudos acadêmicos, vivências profissionais, assim como a partir de um estranho vício em jornais e portais de notícias) não deram conta de desvelar aos meus olhos a complexidade em termos de tragédia sanitária mundial. Estranhava a velocidade com que as informações e mudanças subsequentes chegavam, e desta maneira, optei por transformar esse estranhamento em memórias, a fim de voltar a elas posteriormente e, quem sabe, de alguma forma, compreender essa História que vi e vivi coletivamente.

Desenvolvimento: O objetivo principal é expor minhas considerações sobre alguns acontecimentos, que envolviam essencialmente a centralidade de mulheres pretas, de maneira individual ou coletiva. Como assistente social, profissional de saúde e mestranda em Saúde Coletiva, nunca projetei para minha vida participar de um momento histórico de tal magnitude, onde as mazelas às quais outras mulheres pretas como eu, de diferentes inserções na sociedade, estão cotidianamente submetidas; mazelas essas que afloraram com intensidade e mostraram todo um espectro de desigualdades.

No Rio de Janeiro, o ponto de partida na contagem desenfreada de mortes que tivemos foi uma empregada doméstica, contaminada pela patroa que passou férias no exterior e não avisou do contato com o vírus. Morando no interior do Estado, de onde saía para ficar quatro dias por semana na casa onde trabalhava há cerca de 20 anos, foi devolvida para a família nos primeiros sintomas, e morreu poucos dias depois. Exemplo de que a precarização enfrentada por essas mulheres em seus postos de trabalhos não se limita apenas a jornadas longas, exaustivas e baixos salários. Outro exemplo, este muito pessoal, é que as primeiras vítimas da pandemia no hospital onde trabalho foram duas mulheres pretas, ironicamente no Dia do Trabalho; ambas em grupo de risco para a covid e num momento em que os equipamentos individuais de proteção eram itens raros em qualquer unidade de saúde.

Outra face aguda da desigualdade é a violência presente nos espaços populares, perpetrada tanto por grupos organizados, paramilitares ou não, quanto pelo braço armado do Estado: no mês de maio de 2020, uma mãe preta da Comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, chorou a morte de seu filho de 14 anos. João Pedro jogava com outros meninos pretos da comunidade onde morava, obedecendo ao que os protocolos de saúde recomendavam, enquanto seus pais não tinham essa possibilidade e trabalhavam ali perto. Morreu abatido por tiros dentro de casa, acusado de dar cobertura à bandidos inexistentes numa fuga inexistente. Seu corpo desapareceu, levado numa fictícia tentativa de socorro, e foi descoberto pela família somente no dia seguinte, dado como identidade ignorada no IML do município vizinho do Rio de Janeiro. Só consigo pensar na dor dessa mulher preta que enterrou seu filho preto perto do Dia das Mães.

Se a reação à morte de João Pedro tivesse sido contundente, com ações que ousassem pensar em mudanças profundas no que se costuma chamar de Política de Segurança Pública, talvez não tivéssemos a Chacina do Jacarezinho, no mesmo mês do ano seguinte. E mais uma vez, das inúmeras que ouvi ao longo de uma vida inteira, perguntamos: até quando o povo preto, pobre, marginalizado nas favelas e subúrbios desse Rio de Janeiro será tratado como perigo potencial e digno de ser massacrado em seu próprio território? Que “Política” de Segurança é essa que elege como seus alvos os mais vulneráveis, os define como criminosos antes mesmo de saber quem são e o que fazem, e marca um alvo nessas pessoas pela cor de sua pele? Que nossa sociedade é racista, classista e construída em cima de uma maldita herança escravocrata nós já sabemos, mas isto nunca reduzirá minha indignação ao ler e ouvir notícias como esta. Como dormir tranquilamente sabendo que famílias como a minha estão limpando o sangue dos seus de suas casas e vielas? Também sabendo que, do outro lado dessa moeda, uma outra família igualmente chora pela perda da outra peça necessária nessa guerra sem fim – o policial que leva a opressão e cumpre o papel de executor dessa política sangrenta, onde matar é o único planejamento... e se o executor também morrer, estará apenas cumprindo seu dever. Infelizmente para todos nós, de ambos os lados há várias ‘peças’ aguardando para fazer a substituição.

A insegurança alimentar – mostrada à exaustão por fotos e vídeos onde pessoas, em sua maioria mulheres pretas, disputam restos de comida em sarjetas e caçambas de lixo – deveria ser considerada uma endemia paralela. Para além das questões sanitárias envolvidas, o que se coloca é uma outra fotografia: com os já precários postos de trabalho extintos, redução da quantidade de trabalhos informais, aumento na quantidade de pessoas vivendo sob a mesma renda formal, vêm junto a redução do poder de compra do mais elementar à subsistência humana. Muitas pessoas neste país passam fome, o salário-mínimo mal paga o básico, e é sabido que, apesar do salto qualitativo que houve no país até o final da primeira década deste século, houve retrocessos nos últimos anos e ainda estamos muito longe nos aproximarmos de um estágio amplo de segurança alimentar.

Resultados: Estes escritos são reflexões, onde depositei minhas percepções, angústias, e se tornaram um espaço que encontrei para uma reflexão e reafirmação de minhas convicções enquanto mulher, preta, acadêmica, trabalhadora da Saúde. Me ajudam a me posicionar enquanto ser social inserido numa sociedade classista, racista, misógina, ser este que luta para que, através de sua inserção nessa sociedade, consiga levar um sopro de pensamento crítico por onde possa passar. Os três casos foram escolhidos de forma aleatória, porém entre os que mais me marcaram durante o período, e uso para suas leituras o viés crítico e interseccional que imprimo para minhas análises cotidianas.

Considerações finais: Tenho comigo que as nossas são um poderoso catalisador de análises e, por despertarem reflexões, lembranças e questionamentos, através delas podemos repensar o passado, nos situarmos no presente e trabalhar para que o que não foi bom não se repita no futuro. Com o recurso de somar excertos, imagens e notícias, acredito conseguir apresentar uma visualização, dentre as muitas possíveis, bem concisa e reflexiva do que foi este período para a minha trajetória e construção pessoal, profissional e acadêmica.