Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Matripotência é cuidado, matripotência também é SUS
Graziele MARTINS, ROCHA VERA

Última alteração: 2022-02-24

Resumo


Havia uma menina em Porto Alegre que gostaria de ser mãe, sim menina porque aos olhos de Oxum, orixá que a acompanhava,  ela era uma menina. Filha de Iansã,  dona dos ventos, forte como um búfalo porém tinha a leveza de uma borboleta. A medicina ocidental e tradicional não acreditava na potência daquele útero de ter uma gestação saudável e completa sem que houvesse uma perda, como já  havia acontecido uma vez.

Oxum traz dentro de si a potencialidade da criação, chamada de dona do ouro e dos encantos femininos também conhecida como feiticeira, a fecundidade das mulheres é coordenada conforme o desejo de Oxum. Existe uma lenda que conta que os orixás se reuniam na terra para tomar decisões políticas e, as mulheres eram proibidas de participar, Oxum, como forma de protesto, tornou todas as outras mulheres estéreis impedindo o sucesso das deliberações dos outros orixás. Quando foram reclamar para  Olódùmarè, o ser supremo criador do universo, ele exigiu a presença de Oxum nas reuniões pois a presença da força feminina de iyagbá garantiria sucesso nos empreendimentos. Dessa forma, com a participação de Oxum, as atividades que eram realizadas voltaram a ser bem sucedidas e as mulheres voltaram a ser férteis.

Oxum e Oyá são iyagbás (orixás femininas) que trazem dentro de si a força matripotente, Oyewumí afirma que o conceito de matripotência coloca a figura da iyá/yeyé (mãe) no centro de poder espiritual, econômico e material já que a partir da colonização a figura de mãe foi associada  a um papel inferior. A maternidade nada tem a ver com os conceitos ocidentais de feminino, que coloca a mulher no centro como figura frágil e subalterna, o conceito iorubá de maternidade é centralizado no fato de que matrigestar é lugar de potência e não gênero. A gestação é algo coletivo, a ancestralidade é um grande útero e por isso Oxum e Oyá foram as paredes uterinas da menina filha da dona dos ventos, porque a cultura iorubá tem a concepção de existência pautada na relação entre o natural e o cosmo, o visível e o invisível, por esse motivo a fé é uma aliada de todas essas iyás durante nove meses, porque mulheres negras que tem como referência à ancestralidade são capazes de estar a frente das adversidades.

E a nossa doce menina? Seria acompanhada pelas forças ancestrais? Sendo filha de duas iyagbás importantíssimas, a menina não poderia ficar desassistida. Oyá/Iansã Niqué Dolajocí , forte, guerreira e capaz de vencer guerras  com seus ventos, defensora de seus filhos com a fúria de um búfalo bravo e Oxum Demun Talabiomi, orixá capaz de vencer guerras sem ao menos entrar em um campo de batalha. As duas estavam unidas por um único propósito: o desejo de um bebe que seria o fruto de uma união e  fé de todos que as rodeavam.

Oxum presenteou sua doce menina com uma gestação e junto a essa presente uma promessa de que iria até o fim, sua menina ganharia um bebê forte e cheio de saúde.  Do primeiro dia de gestação até o último  Oxum Demun Talabiomi foi como as paredes do útero de sua filha, paredes essas que sustentaram um bebê muito esperado e que antes mesmo de nascer já era muito amado. O que a medicina ocidental não entendia era a determinação da filha dos ventos, afinal sua grande mãe carrega dentro  de si força, segurança, sustento e a lealdade. Iansã não é um orixá doce como Oxum, afinal tempestividade não combina com docilidade, Iansã é forte como um relâmpago, é como um rio que faz seu próprio caminho. É capaz de rupturas e transformação, Iansã traz dentro de si a matripotência.

Foram incansáveis dias e noites de insegurança e medo, porém, muita fé,  fé  no que é feito com amor e dedicação,  fé na vontade dos orixás. Após uma espera que parecia eterna, Oxum Demun Talabiomi junto a Oya Nique Dolajoci,  aquela que protegeu a menina dos ventos e manteve sua fé intacta, junto a medicina tradicional, que apesar da descrença é um fator determinante nessa história, e um exército incansável de orixás entregaram a essa mãe uma menina  linda, forte e cheia de saúde. O que os médicos também não entendiam era a força da fé da menina dos ventos e de sua mãe de santo,  filha de Oxum Demun orixá feminina iorubá que  representa a doçura através das águas doces, águas essas que apesar de apresentar calmaria afogam, já que a queda de uma cachoeira além de conter beleza tem potencial de destruição. Contrariando todas as estatísticas, a menina, filha da dona dos ventos, se tornou mãe, e até hoje a medicina tradicional não consegue entender como foi possível. E como poderiam entender a potencialidade de Oxum e Oyá, yabas que andam juntas, sem ter fé?

O caso da menina filha dona dos ventos mostra como sua fé foi uma importante aliada da medicina tradicional para manter sua gestação firme e saudável, podendo considerar a fé como forma  complementar de cuidado em saúde. Este fato nos leva a questionar  por que  os saberes ancestrais tanto de matriz africana quanto das comunidades indígenas e povos originários são discriminados nas práticas de saúde e de formação de profissionais das mais diversas áreas se no Sistema Único de Saúde (SUS) existe um conjunto de práticas complementares que faz parte da formação dos profissionais.

As práticas integrativas e complementares no SUS (PICs) surgem como uma nova alternativa para estudar, aprender e praticar saúde, é uma forma de trazer para perto do usuário do serviço as subjetividades no cuidados e torná-las ativas no  processo de saúde, pois existe a visão de que o ser humano  é um indivíduo amplo que possui diversas complexidades que interferem no seu bem estar. Estão incluídas nas PICs a medicina tradicional chinesa e acupuntura, homeopatia, plantas medicinais e fitoterapia, termalismo social/crenoterapia e medicina antroposófica.

O cuidado em saúde ao romper com o preconceito epistemológico poderá trazer para o universo do SUS outros saberes que necessitam ser respeitados, divulgados, aplicados e vivenciados como são os saberes ancestrais.