Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Transgeneridade e o SUS: incipientes entrelaços
Sabrina Eduarda Bizerra e Silva, Camila Pimentel Lopes de Melo, Stella Stark Souza Amorim, Francisco Jaime Rodrigues de Lima Filho, Régia Helena Martins de Oliveira Meyer

Última alteração: 2022-02-25

Resumo


APRESENTAÇÃO: Este trabalho se propõe a relatar a realização de consultas médicas, com vistas à hormonização de pessoas transgêneras, em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do município de Caruaru/PE. As consultas às pessoas transgêneras - termo que engloba travestis, homens trans, mulheres trans e pessoas não binárias - ocorrem desde o mês de julho de 2021, com anuência da gestão municipal, e, não se restringem à população adscrita à UBS, visto que não há outro serviço público municipal que faça esse tipo de assistência. A maior parte dessa população, no país, vive em condições de miséria e exclusão social, sem acesso a direitos básicos como saúde, educação e empregabilidade. Desde 2008, o Brasil se mantém no 1º lugar do ranking de assassinatos de pessoas transgêneras ao redor do mundo - realizado pela ONG Transgender Europe. Neste cenário, o nordeste se configura como a região que mais mata pessoas transgêneras. A questão de gênero se inicia antes mesmo do nascimento, pois a identificação do sexo biológico a partir da visualização da genitália, durante a ultrassonografia obstétrica, impõe a existência de um gênero e uma orientação sexual àquele ser, pela nossa sociedade heteronormativa. Porém, sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual são categorias distintas, que se relacionam em diversas combinações. A genitália nomeia o sexo biológico em masculino, feminino e intersexo. O gênero é diferenciado a partir do autorreconhecimento (homem, mulher, gênero fluido, sem gênero, entre outros). E a orientação sexual se apresenta a partir dos afetos e desejos: homossexual, heterossexual, assexual, entre outros. Não existe um continuum entre essas categorias, bem como não são imutáveis ao longo da vida. O Brasil, desde 2011, possui uma política nacional de saúde específica para a população de lésbicas, gays, bissexuais, transgeneros, população queer, pessoas intersexo, assexuais e outros (LGBTQIA+), que se propõe a garantir a essas pessoas o direito à saúde integral, humanizada e de qualidade nos diversos serviços do SUS, porém, o cumprimento dos princípios e diretrizes do SUS não ocorre apenas por meio das publicações de suas políticas públicas. Diversos estudos identificam discriminação, homofobia, exclusão, estigmatização com infecções sexualmente transmissíveis, e desconhecimento da política pelos profissinais. Também, é demonstrado patologização, falta de qualificação profissional e um acolhimento inadequado. Na prática ocorre um cuidado centrado na saúde mental, e, nos procedimentos hormonais e cirúrgicos nos hospitais universitários. Caruaru, município do agreste de Pernambuco, tem uma população de aproximadamente 300 mil pessoas e localiza-se a 140 km da capital - Recife - onde há dois ambulatórios estaduais e um ambulatório no Hospital das Clínicas/UFPE que são específicos para a população LGBTQIA+. Em Caruaru, no ano de 2020, havia o total de 249.668 pessoas cadastradas no e-SUS APS. Destes, há registro de 397 pessoas homossexuais, 26 bissexuais, 720 homens trans e 207 mulheres trans - o que significa que somente 0,5% da população caruaruense é identificada como LGBTQIA+. Esse dado traz consigo questionamentos sobre o acesso à rede local e a possibilidade de omissão de informações.

DESENVOLVIMENTO: As consultas às pessoas transgêneras foram divulgadas verbalmente pelos agentes comunitários de saúde (ACS) no território, e também, aos movimentos sociais, e, foram marcadas, principalmente, a partir de uma sanitarista - residente em saúde da família - que participa do movimento social LGBTQIA+ municipal. Em paralelo, algumas pessoas procuraram o serviço a partir da divulgação dos próprios pacientes transgêneros que iniciaram o acompanhamento na UBS. Houve uma pactuação com a gestão para haver a disponibilidade de uma consulta por semana para a pessoa transgênera que reside em território não coberto pela UBS, objetivando não interferir na rotina de atendimentos da UBS. Nestes 6 meses foram atendidos 20 pacientes: 10 mulheres trans e 10 homens trans. Dentre eles:

  1. Dois homens trans residem em outro município e os demais são caruaruenses, porém, somente 3 pessoas fazem parte da população adscrita à equipe;

  2. Duas mulheres trans, com idades de 42 anos e 37 anos, não objetivavam hormonização (pois não queriam usar tais medicamentos), mas buscavam tratamento das sequelas do uso de silicone industrial, às quais foram encaminhadas ao cirurgião plástico. Os demais, na faixa de 18 a 25 anos, solicitaram acompanhamento para as modificações corporais - com o uso de hormônios;

  3. Um homem trans e uma mulher trans tiveram o primeiro contato com a hormonização após consulta médica na UBS. Os demais se hormonizavam - ou se hormonizaram - a partir dos conselhos de amigos e com informações na internet.

IMPACTOS: Em Pernambuco, as pessoas buscam realizar atendimento nos ambulatórios  situados na capital, porém a maioria permanece em cadastro reserva aguardando abertura de vagas.  Como não há um serviço na rede municipal que realize esse tipo de atendimento, o principal impacto foi no sentido de proporcionar acesso à saúde, que pode ser caracterizada a partir da disponibilidade e localização do serviço, da aceitabilidade do serviço pelos usuários, da capacidade de pagamento (dos custos indiretos como o transporte, ou dos custos diretos como o pagamento da consulta ou da medicação), e, do letramento em saúde dos usuários. A maioria dos pacientes não havia realizado consultas médicas, odontológicas ou de enfermagem nos últimos 5 anos, pois não frequentavam a UBS do seu território. O único homem trans com mais de 25 anos não havia realizado o exame de Papanicolau conforme diretriz do Ministério da Saúde. E, nas consultas, apesar do foco na hormonização, também foram ofertados outros cuidados. Estes pacientes tiverem otimização do seu processo transexualizador, utilizando medicações mais adequadas e monitorando possíveis efeitos colaterais a partir do acompanhamento clínico. Além do impacto na vida dos usuários, o serviço também sentiu o efeito dessa experiência a partir da convivência com pessoas transgêneras - visto ser estimado que 80% da população brasileira não convive com pessoas trans - e, no aspecto técnico, com as ações de educação permanente realizadas pela gestão municipal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Nestes 6 meses, foram atendidas 20 pessoas transgêneras, com suas trans-especificidades, e também, com questões de saúde gerais. As pessoas trans passaram a fazer parte, mesmo que de forma inicial, do processo de trabalho da Atenção Primária à Saúde. Porém, alguns desafios ainda persistem: a divulgação necessita ser ampliada; é necessário garantir o nome social nas guias de exames e de encaminhamentos; é necessário ampliar os serviços que realizam este tipo de assistência na rede municipal; precisa haver mais ações de educação permanente; a localização da UBS para a maioria dos usuários não é favorável; o medicamento testosterona - usado para o homem trans - não é disponível no SUS e tem um preço elevado; os medicamentos de maior qualidade farmacêutica para feminilização não são disponíveis pelo SUS; além da baixa renda da população trans para investir em tecnologias de mudanças corporais de maior qualidade.