Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
Tamanho da fonte: 
Os médicos do PMM em campo: produzindo identidades pelas diferenças
QUELEN TANIZE ALVES SILVA, Luiz Carlos de Oliveira Cecílio

Última alteração: 2022-02-05

Resumo


O artigo apresenta uma investigação que se ocupou, intencionalmente, de “dar voz” aos médicos participantes do Programa, tentando compreender os sentidos dados por eles à sua participação no Programa Mais Médicos (PMM).

Assim, essa pesquisa configurou-se um estudo qualitativo que buscou extrapolar a formalidade da “grande” política, pela compreensão de que a política formal não pode ser analisada fora dos contextos sociais singulares onde se realiza, sofrendo, continuadamente, influência dos sujeitos, transformando-se quando colocada em prática.  Dessa forma, optou-se pelo método de história de vida para se realizar a análise de uma política pública a partir das vivências singulares dos atores que a constroem com seu labor cotidiano.

A análise foi realizada a partir da perspectiva da Compreensão de Contexto conforme trabalhado por Santamarina, Marinas (1994), trata-se de interpretar as histórias, dimensões de sua tessitura, mas também a dimensão da construção do sujeito, ou seja, o que significa, tomando as historias de vida, apreender o nexo entre texto, contexto e intertexto.

As narrativas dos médicos do Programa que configuraram esse estudo trazem uma “fotografia” do sistema de saúde brasileiro, um modo com que as coisas são representadas ou vistas circunstanciadas ao momento de suas vivências.

Durante a análise das narrativas, verificou-se, em suas histórias, que ser Médico do PMM significou, um movimento cotidiano, em suas práticas e relações sociais, pela afirmação de uma identidade social e a resistência a um estigma que grupos sociais buscavam atribuir-lhes. Essas evidências foram se mostrando para esta pesquisadora a partir das leituras e releituras de suas narrativas, tornando necessária a reflexão desse fato que emergiu na pesquisa.

Para iniciar esse debate, torna-se necessário que façamos o debate sobre identidade e diferença. As velhas identidades, que estabilizaram o mundo social, encontram-se em declínio, possibilitando o surgimento de novas identidades e a fragmentação do indivíduo moderno, até então, compreendido como um sujeito unificado.  Essa “crise de identidade” faz parte de um processo amplo de mudança, que desloca as estruturas e processos centrais das sociedades modernas, abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. O sujeito, compreendido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; constituído de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. (Hall, 2006).

Sabe-se, atualmente, que as identidades culturais não são rígidas, muito menos, imutáveis: são resultados de processos de identificação. Portanto, identidades são identificações em curso, e essas, além de plurais, são sobrepujadas pela obsessão da diferença e pela hierarquia das distinções. (Santos, 1994).

Torna-se relevante, portanto, concepções de identidade e diferença que busquem problematizá-las, colocando em relevo questionamentos sobre suas implicações políticas. A identidade, tal como a diferença, é uma relação social (Silva, 2009).

A partir dessa compreensão, torna-se possível analisar a construção da identidade do médico do Programa Mais Médicos, compreender que essa identidade se produziu em uma relação de poder, que buscou classificar e, até mesmo, estigmatizar os profissionais que participaram dessa política. O ser médico do Programa Mais Médicos parte de uma extensa cadeia de “negações”, de expressões negativas de identidade, de diferenças. Da mesma forma, as afirmações sobre diferença só fazem sentido se compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a identidade. Dizer que “ela/ele é médico do Mais Médicos” poderia significar, em algumas situações, dizer que “ele/ela não é brasileiro’, “não tem uma formação adequada”, “não é bom médico”, dentre tantas outras negativas. Assim, tais negativas estariam imbricadas nessa identidade.

Torna-se necessário compreender que fixar uma determinada identidade como norma permite a hierarquização. A normalização é um dos processos pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença, pois elege uma identidade específica como o parâmetro as outras identidades, por meio do qual são avaliadas e hierarquizadas. A identidade normal é “natural”, sua força é vista, simplesmente, como a identidade. (Silva, 2009).

As identidades de determinados sujeitos individuais ou coletivos são construídas a partir dos parâmetros e expectativas constituídas pelo meio social. A sociedade estabelece os meios de classificar pessoas e os atributos que deverão ser considerados comuns e naturais para os membros de casa uma das categorias. Nesse sentido, os ambientes sociais determinam as categorias de pessoas que neles podem ser encontradas (Goffman, 1988).

Toda a identificação é, também, diferenciação. Nesse processo existe um desejo de demarcação dos limites entre “eles” e “nós”, do estabelecimento de fronteira. A fronteira resulta de um compromisso entre o que o grupo pretende marcar e o que os outros querem lhe designar, pois se refere a uma fronteira social, simbólica.

Ao longo do estudo, esse acontecimento foi ganhando bastante evidência. Verificou-se que, na relação com os pares, ou seja, a categoria médica, deu-se um isolamento desse atributo, a identidade profissional, dando ênfase às diferenças como nacionalidades, raças, linguagem e, até mesmo, processos de formação, sendo que esta última produção de diferença colocava em questionamento a condição para o exercício da medicina. Essa produção de diferença para com os médicos do Programa pode se justificar pela intensa resistência apresentada pela categoria médica brasileira, em uma defesa corporativa, sindical, associativa ou para os interesses específicos da categoria, com apoio de parte dos meios de comunicação.

Assim, ficou perceptível a produção de fronteiras, um “eles” e “nós” que se mostrou nas desconfianças da população, da relação com os colegas de outras categorias e entre seus pares e na própria necessidade de afirmação dos entrevistados e entrevistadas. A necessidade desses profissionais de, diariamente, superar expectativas projetadas em seu grupo.

Lembremos que a esses médicos era permitida atuação apenas na Atenção Básica em Saúde, apesar de ocorrerem demandas pelos gestores da saúde em outros níveis de atenção.  A Atenção Básica em Saúde ainda é considerada, apesar do período de constituição do SUS e debate da Reforma Sanitária, um lugar pouco atrativo para inserção médica, um espaço com pouca densidade tecnológica e de acesso à saúde pelas populações mais pobres. A formação médica ainda se centra em hospitais e nas especialidades (Gomes; Costa; Junqueira et al., 2012). É nesse lugar de fazer medicina, com pouca valorização, no interior da categoria médica, que o médico do PMM tem sua atuação restrita.

A língua foi outra barreira a uma integração social dos sujeitos dessa pesquisa. Falar uma língua significa, também, ativar e estar inserido na imensa gama de significados que estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais. Os significados são construídos nas relações de similaridades e diferenças que as palavras têm entre si no interior de uma língua (Hall, 2006). Por isso das dificuldades de inserções em brincadeiras de serviços ou confusões referentes a algumas palavras. A constatação de um eterno sotaque parece declarar/condenar a um lugar de eterno diferente.

Nesse estudo apenas explicitou-se o inusitado, que emergiu das narrativas dos sujeitos de pesquisa, os médicos participantes do PMM, colocando uma questão social que pareceu não ser pensada ou planejada nessa política pública e que atravessou suas vivências. Esses profissionais precisaram organizar e desenvolver estratégias de enfrentamentos sozinhos ou em seus grupos. Isso também aparece em suas narrativas. A questão da diferença de identidade permeia seus olhares estrangeiros. Aliás, essa questão que permite a configuração e as perspectivas de seus olhares.