Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A vida requer ancoragem: grupos de apoio às pessoas enlutadas pela covid-19
Maria de Fátima Bueno Fischer, Maria Judete Ferrari, Rafael Wolski de Oliveria, Emmnuelle Tijerina Dallegrave, Sandra Maria Sales Fagundes

Última alteração: 2022-02-11

Resumo


O trabalho relata a experiência de grupos de apoio às pessoas enlutadas pela covid-19, desenvolvida na Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 – AVICO Brasil. Esta associação, um coletivo social constituído em abril de 2021 por iniciativa de quem já tivera covid, perdera familiares, amigos e colegas, e/ou era ativista sócio-político, tem como objetivo criar um espaço coletivo de luta por justiça, pela garantia e acesso aos Direitos Humanos constitucionais dos sobreviventes da covid-19 e de acolhida ao luto. Entendendo a situação gerada pela covid-19 no planeta como sindêmica (sinergia+pandemia), com interação potencializadora de doenças e impacto desproporcional em comunidades vulnerabilizadas, de baixa renda e de minorias étnicas, percebe-se o agravamento da situação no Brasil pela desigualdade estrutural socioeconômica e pela prática necropolítica do governo federal brasileiro. Instigando ódio e intolerância, o governo produz o extermínio de indígenas, negros, jovens, destrói florestas, contamina águas, desmonta políticas públicas inclusivas, nega a ciência e a existência da pandemia, além de criar, alimentar e propagar um arsenal de falsas notícias. É um governo gerador de pandemônio. No Brasil acontece um sindemônio (sindemia+pandemônio). Assim, falta ar nos pulmões e oxigênio nos hospitais, faltam leitos hospitalares e reforço nos outros pontos de atenção à saúde, os equipamentos de proteção individual são inadequados ou insuficientes para os trabalhadores essenciais, inexistem programas econômicos que garantam a subsistência da população, não há espaços de moradia para isolamento, a conectividade não é facilitada para quem não tem acesso e as vacinas foram adquiridas tardiamente. O impacto resulta na vida ceifada de milhares de brasileiros/as/es, o Brasil é o país com mais mortes em excesso do mundo. Somos desiguais, desconectados e desamparados. Um país de enlutados.

Neste contexto a AVICO constituiu, ainda em abril de 2021, um grupo de trabalho (GT) de apoio aos enlutados com psicólogas/os/es e antropólogas/os/es voluntários, alguns vinculados aos movimentos sociais como a luta antimanicomial no Fórum Gaúcho de Saúde Mental (FGSM) e a grupos de pesquisa como a Rede Covid-19 Humanidades MCTI - UFRGS. O GT foi construindo grupalidade através do conhecimento mútuo, na explicitação de desejos, disponibilidades, inquietações e indagações, no compartilhamento de textos, bem como na elaboração de projetos singulares. A partir da demanda por apoio psicológico dos associados, expressa no preenchimento de formulário de ingresso na AVICO, o GT propôs grupos de apoio aos enlutados. São grupos fechados, constituídos por 8 a 10 familiares que, desde diversos locais no Brasil, se encontram de forma on-line no mínimo 8 vezes, durante uma hora e meia a duas horas por semana, tendo os grupos como facilitadores duplas de psicólogas/os, contando alguns com acompanhamento de antropóloga/o. As/os facilitadoras/es reúnem-se antes e/ou depois dos encontros para identificar os emergentes do grupo, analisar o processo e encaminhar possíveis inserções no grupo. O GT reuniu-se inicialmente uma vez por semana e, no transcorrer dos grupos, a cada quinze dias. Nas reuniões o GT troca experiências sobre os encontros grupais, discute algumas situações críticas, encaminha alternativas de cuidados singulares, planeja atividades, realiza intercâmbio de informações e conhecimentos. Foram realizados três ciclos de 8 encontros, totalizando 20 grupos, com 20 facilitadores.

Do experienciado nos grupos, as/os participantes valorizam o escutar, aprofundar o olhar e o encontro aguardado toda semana. Há um ambiente de acolhimento em cada fala, a cada lágrima, no qual é possível extravasar, compartilhar sentimentos como revolta, solidão, muita dor, onde a dor de amor acolhida traz alento,  colo, paz. As vivências de incompletudes, de vidas transformadas pelas perdas criam no grupo possibilidades, novos encontros, abraços virtuais e sonhos, expectativas de estar juntos em algum momento. Estivemos nas datas difíceis, nos horários mais duros do enfrentar-se com as ausências, e na condução dos grupos nos misturamos muitas vezes. Os encontros sustentam silêncios necessários quando as palavras são insuficientes ou inexistentes. O exercício pleno da escuta, solidariedade, amizades e abraços. O carinho que permite confraternizar as pequenas conquistas singulares, que no grupo tomam um contorno de respeito, a confiança vai abrindo lugar, mesmo que breve, para um alento. O saber que em cada encontro sempre tem alguém pronto para escutar, propicia uma grupalidade forte. Uma grande rede solidária, que todes podem contar, uma rede para descansar. As imagens, fotos, músicas, percursos de cada uma/um, permitindo nos aproximarmos de seus entes queridos. Facilitar estes encontros tem sido uma experiência encarnada, de forte implicação. Um grande e novo aprendizado, onde o coletivo, o grupal abraça as vivências de todes. Todes que acreditam e apostam numa sociedade mais generosa, plural, esperançosa. Aprendizagem em trocas, grupos que se agigantam tamanha a força de viver com tristezas, e na solidariedade dos encontros que funcionam como antidepressivos: “sinto que nos encontros me abraçam, uma solidariedade nos encontros, um alívio”.

Experienciamos a potência dos encontros, produtores de agenciamentos, de ancoragens, de amparo por meio de uma metodologia de escuta livre, sem julgamentos, de acolhimento incondicional, de apoio mútuo e de testemunho. Como disse uma participante: “espero toda segunda-feira para o abraço… sinto vocês comigo”.