Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A RELEVÂNCIA DO RELATÓRIO SOBRE O TRATAMENTO DA POPULAÇÃO LGBT NO CÁRCERE: UMA ANÁLISE DOCUMENTAL
Alessandro Carneiro da Silva, Anne Victória Castro de Moura Cavalcante

Última alteração: 2022-03-07

Resumo


O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. A superlotação é realidade unânime e a diretriz de reabilitação, ressocialização e garantia de direitos humanos se encontram deficientes. Admite-se também a impossibilidade de universalidade dos serviços oferecidos pela prisão (acompanhamento psicológico, assistência social, educação e saúde) e foca-se na realização “do que dá para fazer”. O princípio de separação do espaço interno das prisões é organizado, atualmente,  a partir de critérios particulares e localizados. É comum que facções assumam a gestão simbólica dos espaços de cárcere e que a população carcerária seja dividida em mini populações (ex: evangélicos, ex-policiais, etc). Nesse contexto, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais são pessoas vulneráveis aos efeitos da precariedade do sistema prisional brasileiro, especialmente pela presença do forte preconceito histórico. Mesmo reconhecendo os avanços conquistados nas últimas décadas em relação aos direitos humanos da população LGBT, é necessário reconhecer que a violação de direitos ainda é consideravelmente presente em nossa sociedade, bem como nas penitenciárias brasileiras.

Diante deste cenário, o objetivo do presente trabalho é analisar documentos oficiais que retratem o atual cenário do tratamento penal à população LGBT nas prisões do Brasil e avaliar a relevância dos mesmos para expressar um diagnóstico real e nortear possíveis políticas de saúde pública.

Quanto a metodologia, realizou-se uma pesquisa documental, na qual os dados obtidos foram organizados e descritos de forma dissertativa, de acordo com o objetivo do estudo. A escolha pela metodologia se deu em função de: a) possibilidade de utilizar fontes primárias; b) realizar uma análise qualitativa do fenômeno; c) ampliar o entendimento a partir de contextualização histórica e sociocultural. Foi feita uma busca ativa na plataforma Google dentre relatórios disponibilizado pelo Governo Federal sobre a realidade dos LGBT’s no cárcere. Foram aplicados os seguintes descritores: “relatório LGBT”, cárcere, violência. Os critérios de exclusão utilizados foram estudos que não tivessem formato e/ou conformidade com o tema proposto. Como resultado da busca, foi selecionado apenas um documento. Trata-se do Documento técnico contendo avaliação sobre o atual cenário do tratamento penal à população LGBT nas prisões do Brasil. Este documento inédito, publicado em 2020, é resultado de esforços entre a Secretaria Nacional de Proteção Global, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o Departamento Penitenciário Nacional e atores da luta política por direitos humanos da população LGBT.

É possível encontrar sem muito esforço situações em que os direitos humanos, vitais para a saúde mental de qualquer cidadão, são violados dentro de unidades prisionais, sobretudo para um recorte da população que historicamente é discriminada e marginalizada, a população LGBTQIA+. O Estado, utilizando do sistema prisional, submete essas pessoas a um ambiente disciplinar que vigia e pune, ao invés de buscar incluir esse indivíduo, respeitando e reconhecendo suas diferenças. Nesse ambiente, os LGBT’s têm seus corpos julgados como descartáveis e de fácil eliminação, agravam-se abusos à dignidade humana; essa população sofre com violações sexuais, espancamentos por outros detentos, isolamento, retaliações, etc.

A partir das necessidades sociais específicas e latentes, foi elaborado o documento intitulado “LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento”. Esse material foi construído a partir de duas frentes analíticas (quantitativa e qualitativa) executadas simultaneamente. Quantitativamente, um questionário foi aplicado nacionalmente para levantar os seguintes dados: identificação do estabelecimento prisional e do agente responsável pelo preenchimento do questionário; aspecto estrutural da prisão; caracterização das galerias, alas e/ou celas reservadas; perfil da população LGBT. Qualitativamente, foi selecionada, ao menos, uma prisão por estado para a realização de uma visita técnica. Em cada visita foi solicitada entrevista com um representante da administração prisional e com os LGBT’s em privação de liberdade.

Sendo assim, o documento técnico do Governo Federal subsidia condições diagnósticas a partir dos dados sobre a situação da população LGBT carcerária, bem como da avaliação dos espaços destinados a esse grupo (alas e celas); além disso, proporciona uma visualização parcial do andamento do processo de implementação da Resolução Conjunta nº 01, de 14 de Abril de 2014 (CNCD/LGBT e CNPCP), que estabelece o parâmetro de tratamento penal para a população LGBT. O documento ainda propõe um protocolo de boas práticas para o tratamento penal digno de pessoas LGBT nas prisões do Brasil. O relatório possibilita, portanto, proposições para a elaboração de um protocolo de procedimentos institucionais, de segurança e de atenção às especificidades da população LGBT nas prisões, gerando subsídios para orientar políticas públicas futuras.

Ainda acerca da relevância do documento para expressar um diagnóstico real e nortear possíveis políticas públicas, ressaltamos que existem diversos elementos situacionais que implicam na produção dos dados quantitativos. Condicionantes como a garantia de sigilo da declaração da identidade de gênero e/ou da sexualidade, a aplicação do questionário individualmente e em espaço reservado e a percepção individual de segurança que uma pessoa LGBT em privação de liberdade são apenas alguns elementos que podem levar a omissão da auto-declaração. Pode haver também falhas no preenchimento do questionário e outros empecilhos. Por limitações bem definidas, os dados quantitativos de pessoas LGBT nas prisões do Brasil não podem ser utilizados como instrumento de censo, mas funcionam muito bem como indicativos para um parâmetro nacional fidedigno.

Os dados coletados definem o perfil do cárcere LGBT. É um indivíduo que tem uma faixa etária, autodeclaração de cor e tipologia criminal bem definida. A autodeclaração é um entrave generalizado também. Muitos carecem de medidas protetivas, há a escassez de qualquer tipo de atenção específica a essa população. Isso implica não só no aumento da vulnerabilidade, mas, também, na dificuldade de produção de dados, uma vez que se colocam como limitantes à autodeclaração. O diagnóstico por região apontou também o insucesso em garantir direitos bem descritos e previstos institucionalmente. É o exemplo da Região Norte: esta possui apenas uma cela/ala entre todos os estados. Dados sobre a visitação que a população LGBT recebe também evidencia a doença social do preconceito, marginalização e ausência de suporte para essas pessoas. Consideramos isto um diagnóstico reflexo da sociedade que indica a necessidade de intervenções para além dos muros das penitenciárias. Diante destas e outras debilidades, o relatório, mesmo com suas deficiências e relativa adesão, consegue imprimir o quadro real de enfrentamento dessa população no cárcere, destacando, sobretudo, problemas de natureza estrutural.

Conclui-se que o documento técnico mostra um retrato fiel da situação carcerária de pessoas LGBTs. Uma vez feito um bom diagnóstico, considerando o pioneirismo da proposta, espera-se que o próximo passo seja tomado no sentido da criação de políticas públicas, variável condicionada ao Governo. É fato que a população LGBT sofre com a seletividade penal de maneira mais intensa, pela dimensão de classe social, raça e gênero e, por isso, não pode ser entregue ao “lixo social”; medidas abolicionistas precisam ser tomadas dentro e fora das penitenciárias.