Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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VIOLÊNCIAS CONTRA AS POPULAÇÕES DOS CAMPOS, FLORESTAS E ÁGUAS NO CONTEXTO AMAZÔNICO
Raniele Alana Lima Alves, Edinilsa Ramos de Sousa, Marcílio Sandro de Medeiros

Última alteração: 2022-02-23

Resumo


O modo de vida das populações dos campos, florestas e águas da Amazônia é regulado pela reprodução ecológica onde os ciclos das águas, com suas dinâmicas de enchente, cheia, vazante e seca, favorecem uma maior variedade de espécies da flora e fauna. Essas desempenham importantes papéis na vida da região, como dispersor de sementes, na base da dieta alimentar da população local, como fonte de renda da população ribeirinha, e ainda como importantes símbolos do imaginário regional, além de imprimir um ritmo de vida à população local.

A interpretação na perspectiva da Reprodução Social de Juan Samaja revela que a reprodução ecológica pode se expressar negativamente na determinação social das condições de vida e de saúde dessas populações, quando as estratégias de ação propiciadas pelas reproduções política, econômica e cultural não protegem os sujeitos e nem valorizam o modo de vida nestes territórios.

Contudo, as análises em saúde pública, em geral, fazem referências aos problemas oriundos do processo de reprodução social em sua etapa final, como sofrimento e números de enfermos ou mortos. Ou seja, como patologia dos indivíduos e não como conflito ou perturbações do ambiente de desenvolvimento social em que vivem essas populações.

Este trabalho busca identificar os tipos de violências e suas determinações tomando como objeto de reflexão as populações dos campos, florestas e águas no contexto Amazônico.

Realizou-se uma pesquisa qualitativa exploratória, a partir de exame da literatura com análise documental dos dados baseado na teoria da Reprodução Social de Juan Samaja aplicado nas ciências da saúde.

O plano de análise considerou três categorias de objetos das ciências da saúde propostas por Juan Samaja: os problemas – a categoria articula-se com a noção de interrupção de algum processo de reprodução; as representações – entendidas como um mecanismo inerente à operação de constituição e transmissão das normas humanas, por meio da comunicação, e, particularmente, da linguagem, que constitui o substrato de uma cultura. Na atualidade, as representações sociais têm na comunicação midiática um importante vetor de produção dos sentidos e das representações; e as estratégias de ações – que se apresentam no curso da reprodução social, e implicam em ações promovidas nos diferentes estratos hierárquicos (individual, comunitário, societal, Estado), regulados por um sistema de normas, sendo esse produzido por uma cultura que varia no tempo e no espaço.

O problema da violência contra as populações dos campos, florestas e águas, desde 1985 é publicada nas estatísticas do Livro“Conflitos no Campo Brasil”, organizada pelo CEDOC - Dom Tomás Balduíno, Comissão da Pastoral da Terra - CPT, que é a mais importante fonte de informações sobre a violência na zona rural do país.Ela aponta que, em 2020, o Brasil registrou um novo recorde de conflitos: 2.054 (8% maior que em 2019). Desses, 77% acometeram indígenas e populações tradicionais da Amazônia Legal. Os casos mais frequentes foram as ocorrências de Conflito por Terra (248), que se referem a casos de pistolagem, expulsão, despejo, ameaça de expulsão, ameaça de despejo, invasão, destruição de casas e roças; seguidas pelos Conflitos por Água (31) e pelos Conflitos Trabalhistas (9). O Pará respondeu por 25% dos conflitos por terra, se consolidando como o estado mais violento do Brasil em relação aos povos dos campos, das florestas e das águas. Em seguida aparece o Maranhão, com 203; Mato Grosso, com 166; e Rondônia, com 125. Os principais responsáveis pela violência, foram os “fazendeiros" (35%), “empresários nacionais e internacionais” (21%), “Poder Público” - governos federal, estadual e municipal (14%), e outros (30%). Entre as violências cometidas na Amazônia Legal houve 16 tentativas de assassinatos e oito mortes.

As representações sociais na Amazônia são historicamente determinadas. Historicamente, as ocupações sobre a Amazônia conduzidas pelo Estado foram baseadas na noção de economia de fronteira, usada pelo economista inglês Kenneth Boulding no início do século XIX, para explicar o papel do Brasil, e os demais países latino-americanos, como as mais antigas periferias do sistema capitalista mundial, as quais foram fundadas de acordo com a concepção da relação homem-natureza, onde o crescimento econômico é visto de forma linear, e se processa na contínua incorporação de terra e de recursos naturais, que são também percebidos como infinitos. Essas noçoes também ocupam no presente as representações sociais de muitos brasileiros e brasileiras sobre a Amazônia, pois impregnaram o pensamento de uma época por meio do que se denomina de metáforas oficiantes que se transformam, equivocadamente, em modelos para criação científica descomprometida em visibilizar os passivos ambientais do processo que agem na determinação social da saúde dos povos Amazônicos.

As estratégias de ações de enfrentamento da violência na zona rural acontecem concomitantemente em várias arenas, muitas vezes de forma muito desigual, se considerarmos o poder econômico e político dos fazendeiros e dos empresários nacionais e internacionais de silenciar as populações vitimadas. No âmbito do parlamento nacional a atuação conservadora e retrograda da bancada legislativa de deputados e senadores do país denominada “BBB” (parlamentares representantes dos interesses das igrejas evangélicas (“B” de bíblia); agronegócio (“B” de fazendas de criação de boi”); e armamento (“B” das munições e balas) que vem representando os interesses do agronegócio, dos grileiros de terras, dos madeireiros e garimpeiros ilegais, tem sido responsáveis pela desregulação da legislação ambiental e da política de reforma agrária do país.

Recentemente, outra forma de ação orquestrada pelo Estado brasileiro é a criminalização dos movimentos sociais que lutam em defesa da Amazônia, acompanhadas de ameaças de morte das lideranças comunitárias, coletivos e cientistas que há anos denunciam a violência na região.

Os problemas relacionados à violência na Amazônia são complexos e precisam ser abordados também de forma complexa. No campo da saúde é preciso ampliar as abordagens teóricas e as ações de cuidado às vítimas. Cabe a esse setor em suas políticas abranger a assistência, mas também a prevenção das distintas formas de violência, e a promoção de ambientes seguros e saudáveis. Em outras palavras, necessita ultrapassar a visão biologicista e considerar os processos históricos e sociais que as determinam.

No Brasil e na Amazônia questões estruturais e socioculturais se organizaram de modo a gerar muita violência estrutural, expressa nas imensas desigualdades socioeconômicas, no racismo estrutural e no preconceito contra certos grupos vulnerabilizados (negros, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQIA+, entre outros). E essa violência estrutural serve como um pano de fundo que reforça e mantém outras formas de violências, dentre elas a violência interpessoal.

Assim, a categoria Reprodução Social se apresenta como um caminho para compreender a complexidade da violência em suas dimensões biopsicossocial, histórica, ecológica, cultural e política.