Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2022-02-07
Resumo
Apresentação:
O trabalho em saúde possui como característica a imaterialidade daquilo que produz, pois se refere a subjetividade que perpassa cada indivíduo e a forma como reage diante dos atravessamentos da vida, por vezes produzindo sofrimento ou adoecimento de diferentes maneiras. Este trabalho é imprevisível e sensível. Na mesma dimensão, os indivíduos que realizam o trabalho, imprimem singularidades e portam diferentes tecnologias, colocadas à disposição do cuidado das pessoas. O trabalho em saúde requer espaços dialógicos que permitam aos trabalhadores a autoanálise e autogestão.
Uma das diferentes possibilidades de proporcionar o exercício destes processos são as práticas educacionais voltadas à reflexão sobre o mundo do trabalho. A formação stricto sensu promovida em nível de pós-graduação, como os mestrados profissionais, espera como efeito das aprendizagens, a produção de práticas ressignificadas e transformadoras que resultem em melhores formas de cuidado, trabalho e gestão em saúde.
Este relato tem como objetivo descrever a vivência de profissionais que atuam no SUS, que como mestrandos, puderam experimentar o uso de ferramentas analisadoras do processo de trabalho em saúde, como disparadores de autoanálise e reflexão com seus coletivos de trabalho. Trata-se de uma atividade curricular (AC) denominada “A Produção cotidiana do trabalho em saúde” do Programa de Pós-Graduação em Gestão da Clínica da Universidade Federal de São Carlos.
Desenvolvimento do trabalho:
A AC buscou discutir o trabalho em saúde como uma prática histórica, social e dialética à luz de concepções teóricas desenvolvidas por autores do campo da saúde coletiva e de pressupostos do referencial da análise institucional. Alguns conceitos visitados foram os elementos constitutivos do processo de trabalho, a micropolítica do processo de trabalho e alguns conceitos operadores, tais como trabalho vivo e trabalho morto, instituição, instituído, instituinte, analisador e implicação a fim de que os mestrandos pudessem refletir e compreender o processo de trabalho em saúde e como os conceitos apresentados operam na sua lógica assistencial. Como proposta final, apresentou-se aos mestrandos algumas ferramentas analisadoras como o mapa analítico, rede de petição e compromissos, fluxograma analisador, análise institucional de práticas profissionais e análise de implicação. Os temas foram abordados em 10 encontros com cerca de 03 horas de duração, modalidade remota, por meio de plataforma digital, devido a impossibilidade de se realizarem encontros presenciais na vigência da pandemia. O contexto de trabalho dos mestrandos se constituiu como campo de análise e intervenção. Eram diferentes contextos, como equipes da estratégia saúde da família, vigilância sanitária, hospital, gestão da atenção primária, instituição formadora e centro de atenção psicossocial (CAPS). A experiência aqui relatada foi vivenciada em dois CAPS de dois diferentes municípios do interior do Estado de São Paulo. Em ambas as experiências, as trabalhadoras/mestrandas utilizaram a ferramenta fluxograma analisador junto às suas equipes de trabalho em um encontro de reunião de equipe.
Resultados e/ou impactos:
A escolha do fluxograma analisador se deu pela facilidade de uso do mesmo e pela possibilidade de visualização do processo de trabalho e seus entraves. É uma ferramenta bastante visual. A riqueza da construção coletiva do fluxograma é o fato da equipe visibilizar a realidade dos problemas enfrentados pelo usuário e as ações de saúde produzidas. Outro ponto destacado na experiência é a percepção de que não há um processo pronto e definitivo, mas sim que tudo pode ser revisto e reconstruído. Foi possível constatar a necessidade de diálogo e pactos entre os envolvidos em querer construir essa rede, por estarem dispostos a olhá-la e a se olhar sem censuras ou julgamentos, mas visando a melhoria do processo de trabalho em busca do cuidado integral. Algumas características puderam ser evidenciadas em um dos CAPS, como a identificação de que o usuário é inserido imediatamente no serviço, em um atendimento mais humanizado, pois não necessita aguardar fila de espera, não tem senhas e após a recepção é encaminhado para atendimento, devendo apenas aguardar a sua vez. O tempo de espera varia de minutos a uma hora, dependendo da demanda do dia, mas é atendido no mesmo dia que busca atendimento e raramente é dispensado, materializando assim, o acolhimento à demanda espontânea. Percebeu-se também que, devido a pandemia, não ocorreu acompanhamento familiar de rotina, apenas foram realizados atendimentos pontuais quando solicitados e/ou em casos graves que necessitam do acompanhamento presencial. Outra questão é que o profissional médico é excluído do acolhimento devido a demanda (agenda médica, nesse caso) e baixa carga horária na unidade, ficando responsável pelas suas atividades específicas e participação em reunião de equipe. Em alguns acolhimentos, o usuário e/ou familiar procura o serviço para atendimento médico e/ou internação (esta também necessita de avaliação médica), mas há a tentativa da desconstrução da internação como solução para a abstinência de substâncias psicoativas e/ou qualidade de vida. No outro CAPS perceberam algumas questões no período pandêmico, como algumas ações que foram intensificadas, o teleatendimento, atendimentos de referência, além de uma tendência a "ambulatorização" do CAPS. Muitas ações primordiais do CAPS se perderam neste processo como: grupos terapêuticos (mais de 10), ambiência terapêutica, escassez de discussões de casos, menos reuniões com a RAPS, psiquiatras encaminhando mais para "psicoterapia no CAPS", com isso percebeu-se que o CAPS não ofertou o que os usuários necessitavam. Em seu relato a mestranda declarou que o uso da ferramenta a fez interrogar o seu próprio modo de cuidar. Nesse processo analítico a equipe pode encontrar estratégias para se reaproximar de sua finalidade. No espaço da disciplina não foi possível acompanhar os desdobramentos, o que poderia ser uma ação dos processos de educAção permanente em saúde.
Considerações finais
As experiências apresentadas contribuíram para mostrar a importância e potência do uso de ferramentas analisadoras para interrogar o processo de trabalho de equipes de saúde, tendo em vista a atenção integral, e que a formação pelo mestrado profissional é produtora de espaços de autoanálise e autogestão por coletivos que também se beneficiam da formação de seus colegas de trabalho. A vivência da AC levou as mestrandas a uma série de reflexões que cotidianamente não faziam, tirando todos do lugar de normalização do trabalho. Foi interessante olhar e perceber como uma ação ou pergunta leva a desdobramentos que estão implícitos, mas não claro para todos. Uma constatação é que a construção do fluxograma exige tempo e disponibilidade dos profissionais. Embora inicialmente a experiência tenha sido desconfortável e parecia "lógico" o que se tratava, o decorrer da experiência foi evidenciando que os profissionais estavam cristalizados nas propostas de trabalho "impostas pela pandemia" e precisavam de mobilização a fim de dar respostas reais às necessidades de saúde dos usuários do CAPS.