Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Enfrentamento da pandemia de COVID 19: experiência na atenção à população em situação de rua de Niterói
Daniel Noro Lima, Josy Maria de Pinho Da Silva

Última alteração: 2022-02-10

Resumo


A pandemia da Covid-19 vem produzindo impactos sociais, econômicos, políticos e culturais singulares na história da humanidade. Os desafios já evidenciados pela Agenda 2030 foram severamente agravados. O enfrentamento à pobreza, às desigualdades de raça e gênero, ao desemprego, à xenofobia, e finalmente ao esgotamento dos recursos naturais se faz ainda mais necessário no cenário pandêmico e pós pandêmico.

Ressalta-se que no Brasil as políticas de austeridade adotadas pós impeachment da presidenta Dilma vem agravando as condições de vida da população. Esta precarização é acelerada pela forma negacionista e irresponsável que o grupo conservador-neoliberal, atualmente no poder, tem conduzido o enfrentamento à pandemia. Ademais, a instabilidade político-democrática produzida aumenta os desafios a serem enfrentados pela população.

Destaque na América Latina, a cidade de Niterói avançou nas medidas de mitigação desde a chegada da COVID-19 no território nacional, investindo mais de um bilhão de reais no enfrentamento à doença e na proteção social e econômica. Niterói, tão logo a Organização Mundial de Saúde reconheceu a pandemia, instituiu o Gabinete de Crise, grupo intersecretarial para tomada de decisão. Além disso, em maio de 2020 instituiu o Plano de Transição Gradual para o Novo Normal, composto pelo painel de monitoramento de indicadores que permitiu avaliação da situação epidemiológica e da capacidade de atendimento para reorganização da rede de assistência à saúde, comportamento dos setores econômicos e atividades individuais e coletivas.

A partir do decreto no 13588/20 instituindo as medidas temporárias de isolamento social, as quais restringiram a circulação em vias públicas e no comércio da cidade, a dinâmica da população em situação de rua (poprua) da cidade mudou bruscamente. O serviço do restaurante popular foi interrompido, diminuiu-se a distribuição de alimentos realizada por organizações não governamentais e o ritmo da cidade desacelerou rapidamente. A pouca circulação de pessoas inviabilizou a permanência daqueles que se mantinham de doações ou como pedintes às margens nas ruas. Isto produziu um deslocamento dos grupos, com o esvaziamento dos locais onde ocupavam e se vinculavam. As medidas inegavelmente protegeram a vida, contudo os efeitos econômicos e sociais se impuseram sobre a rotina.

Como efeitos podemos citar o aumento o número de casos de violência doméstica e das questões relacionadas à saúde mental, o aumento de casos de abuso de álcool e drogas, elevação do custo de vida e a inflação deixando vulneráveis famílias inteiras. O crescimento da demanda por moradias a partir de abril de 2020, leva a prefeitura a arrendar hotéis emergenciais assim como reorganizar toda oferta de abrigamento. A iniciativa possibilita ampliar o número de vagas nos abrigos gerenciados pela Assistência Social, garante segurança alimentar aos acolhidos, dispara novas oportunidades de emprego e renda e por meio da articulação com o CnaR possibilita melhor qualidade na atenção à saúde e proteção à vida durante a pandemia.

Nesse contexto, serão descritos os principais pontos de atuação do Consultório na Rua durante a pandemia de Covid-19 à população em situação de rua na cidade de Niterói.

A euipe de Consultório na rua (CnaR) de Niterói tinha, em janeiro de 2020, 588 pessoas com cadastro ativo ocupando as ruas ou abrigadas. Destes, 83% se autodeclaravam pardos ou pretos e 70% eram homens. Dentre o complexo conjunto de necessidades de saúde, 58% eram adictos do álcool e outras drogas e 11% tinham comprometimento psiquiátrico. Entretanto, no segundo ano de pandemia é notório, porém ainda não mensurado, o aumento de pessoas ocupando as ruas. Na capital, Rio de Janeiro, houve aumento de 30% da poprua até o final de 2020; desses, mais mulheres e trabalhadores recém desempregados nas ruas.

A nova dinâmica social imposta pela pandemia, direcionou a equipe de CnaR a implementar estratégias de reorganização de rotinas e fluxos assistenciais aprimorando a integração das ações na Rede de Atenção à Saúde, bem como desenvolveu ações para garantia de direitos fundamentais à essa população. Como rotina, passou-se a realizar visitas diárias aos abrigos e hotéis emergenciais para realização de rastreio diário de sintomáticos respiratórios e ações permanentes de vigilância em saúde. As ações visaram tanto o diagnóstico precoce da doença e assistência oportuna, como a prevenção de surtos com a incorporação das práticas de segurança para prevenção do contágio. Para ampliação da capacidade de realização de teste RT-PCR houve capacitação de mais profissionais da equipe. Também foi essencial o treinamento da equipe quanto aos instrumentos de notificação dos casos suspeitos. Importante ressaltar que a rotina diária permitia resposta da equipe de CnaR às demandas espontâneas e programadas para além da síndrome gripal dos usuários.

Uma importante atuação da equipe foi o caso do hotel emergencial 1 (H1), que em sua fase inicial de implantação, proporcionou ambientes de aglomeração e que, somados à baixa adesão aos novos hábitos de prevenção, favoreceu um surto de Covid-19 (11 pessoas contaminadas em maio/2020). A partir da identificação de dois casos simultâneos de covid-19 positivo no H1, a equipe do CnaR iniciou a investigação de surto, onde 78 pessoas, entre usuários e profissionais da Assistência Social, tiveram suas histórias colhidas e foram testados (testagem rápida de anticorpos IgM/ IgG por meio de material sanguíneo). Tal medida possibilitou a interrupção do contágio, através do isolamento dos casos e da intensificação das medidas de vigilância e prevenção.

No âmbito da construção do SUS e da garantia dos espaços democráticos mesmo no cenário pandêmico, a Secretaria Municipal de Saúde iniciou, em fevereiro de 2021, a construção do Plano Municipal de Saúde (PMS) participativo, com o apoio do CnaR, pode contar com a participação da poprua para orientar ações da secretaria na construção do SUS que os ocupantes da cidade desejam.

Outra ação de destaque foi a vacinação da população em situação de rua, que foi operacionalizada pelo CnaR. A vacinação foi disponibilizada na base do CnaR, nos hotéis e abrigos, nos locais de maior concentração da poprua, assim como no Centro de Convivência LGBTQIA+.

Até o presente momento, o número total de casos confirmados na porua foi aquém do estimado, assim como as complicações devido às condições de vulnerabilidade, o que pode ser explicado pelo estrutural isolamento social ao qual esta população está submetida. Nas ruas a “invisibilidade” e a marginalização de seus corpos possivelmente os protegeram de maiores índices de contaminação e adoecimento por Covid 19. Já nos equipamentos de abrigamento, o baixo número de casos positivos pode ser explicado pelas medidas de proteção implantadas e pela articulação entre o CnaR e Assistência Social. O aumento da cobertura vacinal contra a Covid-19 também foi fundamental para a proteção de todos(as).

Em relação à participação popular, destaca-se que a atuação da poprua no PMS, deu origem ao Conselho Local da poprua, formado em dezembro/2021 com capacitação pelo Conselho Municipal de Saúde.

Deste modo, concluimos que o enfrentamento à pandemia de Covid-19 é também o enfrentamento à lógica de precarização das condições de vida e das reformas, intrínsecas à racionalidade e ao discurso neoliberal, que retiram direitos da população. As políticas de Saúde e de Assistência Social devem ser defendidas com ações no nível local para contínua garantia do direito à vida digna, estruturada nas relações comunitárias, afetivas, de trabalho e acesso aos espaços e serviços da cidade.