Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A imprensa e a estigmatização da Pessoa em Situação de Rua
Tiago Braga do Espirito Santo, Letícia Parente Gonçalves, Natália Estefânia Gaze Teixeira, Clarissa Terenzi Seixas, Fernando Porto

Última alteração: 2022-02-25

Resumo


Apresentação e objetivo: Tendo em vista o papel da imprensa na publicação de conteúdos que influenciam pautas governamentais e políticas públicas, contribuindo também para a construção do imaginário social, toma-se como objetivo do presente estudo: analisar os discursos da imprensa sobre a População em Situação de Rua nos meios de comunicação, à luz dos Padrões de Manipulação da Grande Imprensa de Perseu Abramo. Método do estudo: Pesquisa documental de abordagem qualitativa. Para tanto, foi utilizado o buscador Google, tendo considerado as publicações em periódicos entendidos como imprensa escrita (jornais) e veículos de imprensa digital (jornais on-line). Tendo em vista estudos anteriores, foram utilizados para a busca os termos ¨moradores de rua¨, ¨mendigos¨ e ¨População em Situação de Rua¨. A delimitação temporal foi estabelecida entre 2014 a 2019. Identificaram-se 5 documentos, que foram analisados segundo os pressupostos da análise de conteúdo de Bardin (2011), fazendo emergir três categorias. Contudo, para este estudo, por motivos de aprofundamento, será abordada apenas a primeira delas: ¨nomenclatura para Pessoas em Situação de Rua e o uso de substâncias psicoativas¨. Resultados e discussão: A leitura dos documentos possibilitou a identificação de 9 termos, a saber: cracolândia (12 repetições); usuário de drogas (6 repetições); dependentes químicos (4 repetições); usam entorpecentes (2 repetições); usuários (1 repetições); usuários de álcool e drogas (1 repetições); viciados (1 repetições); pessoas que usam drogas em meio a muita sujeira (1 repetições); e profunda relação do grupo com o uso de crack (1 repetições), totalizando, assim 29 repetições no corpus documental. A quantificação dos termos demonstra as repetições das palavras ou trechos utilizados pela imprensa. O termo que apresentou maior frequência foi “Cracolândia” e aqueles menos presentes foram “Usuários, Usuário de álcool e drogas, Viciados, Pessoas que usam drogas em meio a muita sujeira" e "profunda relação do grupo com o uso de Crack”. Nos termos e expressões “Usuários, Usuário de álcool e drogas, Viciados, Pessoas que usam drogas em meio a muita sujeira” e "profunda relação do grupo com o uso de Crack” atribuídos à PSR, podemos identificar o uso de usuário/viciado como grupo articulado ao álcool, drogas (Crack) em ambiente de sujeira. Isso aponta para a construção no imaginário do leitor sobre o contexto da PSR. Trata-se de uma construção social, que demarca os valores, como se fossem generalizantes e aceitos como verdade, inclusive potencializados pelas expressões “Usuários de drogas”, “Dependentes químicos” e “Usam entorpecentes” com frequências medianas. Em síntese, nos meios de comunicação essa população é apresentada como pessoas que habitam lugares sujos e fazem uso e comercialização de drogas e álcool - uma cracolândia - de forma generalizada. É nessa perspectiva que os resultados foram analisados. A discussão identificou um discurso homogeneizador dos modos de viver na rua, que vincula este grupo ao uso de substâncias psicoativas, de modo estigmatizante, reforçando a exclusão social. Por sua condição, a população em situação de rua vivencia exclusão social e preconceito, que potencializa as dificuldades e fragilidades que encontram na vida na rua. Acentuando a problemática, a imprensa retrata esse grupo de forma distorcida, realizando um trabalho diferente do que é esperado para os meios de comunicação. Apesar do quantitativo de documentos utilizados ser pouco representativo e não poder concluir afirmativas acerca de tudo o que foi publicado pela imprensa, o material encontrado apresenta importantes elementos que dizem respeito à produção artificial da realidade. A análise demonstrou que a imprensa, ao pautar a PSR, a vincula sistematicamente a ambientes com baixas condições de higiene e uso de substâncias psicoativas, aos quais atribuem o nome de Cracolândia. Contudo, estudos evidenciam uma outra realidade sobre a PSR, que vem sendo sistematicamente omitida pela imprensa. Na Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (2012) o uso de substâncias, de fato, aparece como o principal motivo para a ida para as ruas. No entanto, este documento também apresenta como importantes elementos para esta condição o desemprego e as desavenças familiares. Estes últimos não são abordados pelo discurso da imprensa, destacando-se, exclusivamente, o consumo de drogas, talvez, para potencializar o consumo do leitor, o que acaba contribuindo para a cristalização de certas compreensões e esteriótipos. Outro elememento que não é abordado pela imprensa é o trabalho realizado pelas diferentes instancias da saúde. Os documentos evidenciam apenas as intervenções do Estado centradas nas "ações de acolhimento" realizadas pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH). Estas ações estão voltadas, fundamentalmente, para o encaminhamento das pessoas em situação de rua para um ¨Hotel Solidário¨. Utilizando-se desta intervenção, a imprensa reafirma a dificuldade da efetividade das ações, responsabilizando a PSR por sua “profunda relação com o uso do crack” atribuindo a este fato a recusa da permanência no Hotel. Os documentos informam também que, por conta de entraves legais, é impossível realizar a internação compulsória. Esta narrativa tende a produzir no leitor a compreensão de que o Estado tem realizado ações coerentes ao que é demandado para a produção de saúde tendo, contudo, por limitações jurídicas, seu trabalho cerceado. Nesse bojo, silencia-se toda a gama de outras possibilidades de produção de cuidado em liberdade, como os Centros de Atenção Psicossociais e o Consultório na Rua, vinculado à Atenção Básica, que não são citados em nenhum documento encontrado. A imprensa é capaz de interferir sobre o que a população vai se atentar ou negligenciar, se tornando um dos elementos de construção da realidade e de intervenção no cotidiano da população. No estudo em tela, o que se evidenciou foi a construção de um discurso da imprensa que estabelece uma relação tácita entre a PSR e o uso de substâncias psicoativas. Homogeneíza-se assim um grupo populacional complexo a partir de características que sedimentam a exclusão, a imobilidade social, a humilhação e a violência. Poderíamos conrribuir com deslocamentos ao que vem sendo divugado, afirmando que o fenômeno PSR relaciona-se à problemática inerente à sociabilidade neoliberal. Nesse bojo, a construção identitária estigmatizante alinha-se ao regime de verdade que favorece a perpetuação das categorias socialmente aceitas a partir dos critérios de normalidade da atual conjuntura. A narrativa da imprensa, afinada a este regime de verdade, coisifica identidades e influencia o entendimento social. Sabe-se que apenas a compreensão das particularidades da PSR não é suficiente para dar conta do problema da exclusão social. Contudo, a produção do conhecimento acerca dos regimes de verdade que agenciam o controle dos corpos e seus modos de existir, aumenta a sua visibilidade e gera discussões acerca da necessidade de construção e efetivação das políticas públicas para reduzir as iniquidades sociais. Acredita-se neste caminho formativo como possibilidade para a interrupção do ciclo de violência física e simbólica vivenciada cotidianamente pela PSR. Conclui-se pela necessidade de repensar a implicação da imprensa na manutenção do status quo neoliberal, na perpetuação das violências e da invisibilização desse grupo diverso e complexo. Desta forma, o estudo contribui para a reflexão acerca da necessidade de implementação de políticas direcionadas ao acesso desse grupo populacional à saúde e à assistência social como condição para a redução dos preconceitos, vulnerabilização e das violências que lhes são cotidianamente impostas na sociabilidade capitalista.