Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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(Re)construindo histórias: A importância do vínculo no cuidado em saúde
Tiago Braga do Espirito Santo, Liliene Morcelle de Almeida, Fernanda Resende Walter

Última alteração: 2022-02-25

Resumo


O presente relato de experiência aborda o vínculo como posicionamento ético-político na produção do cuidado em saúde mental, através do acompanhamento de um usuário em um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II). João[1], 25 anos, evangélico, técnico em edificações, reside com os pais e três irmãos na zona oeste no Rio de Janeiro, chegou ao CAPS acompanhado de seus pais por demanda espontânea. Seu primeiro atendimento foi realizado, junto à família, por uma psicóloga e uma residente em terapia ocupacional. João precisou que seu pai o conduzisse até a sala, onde permaneceu em silêncio. Os pais contaram sua história, relatando uma infância e adolescência condizente com o esperado para a idade. Concluiu o técnico em edificações e começou a trabalhar, sempre dedicado e demonstrando gostar do emprego. Contudo, a estreita relação entre os trabalhadores e o tráfico fez com que João se calasse diante da situação. Percebendo a dificuldade, seu chefe sugeriu que mudasse de empresa.Em casa, aguardando ser chamado novamente, passou a apresentar-se mais recluso: deixou a igreja, excluiu sua rede social, afastou-se dos amigos e não atendia as ligações do novo chefe.As conversas se espaçaram, ficando horas no banheiro, para onde levou lanches, travesseiro, lençol e passou a dormir. A decisão de leva-lo à emergência hospitalar ocorreu quando seu pai jogou um balde de água, mas João permaneceu imóvel e sem falar. Do hospital foi encaminhado para a emergência psiquiátrica, onde, apesar de permanecer apenas um dia, recebeu o diagnóstico de esquizofrenia catatônica. Neste breve processo inicial de acompanhamento, João recebeu a indicação de Eletroconvulsoterapia, uma vez que “todos os livros de psiquiatria indicam ECT para casos como esse¨.A partir desta escuta, foi construído com João e família um Projeto Terapêutico Singular (PTS) voltado à restituição da autonomia e realização das atividades de vida diárias. No PTS, João seria inserido gradativamente nas atividades do frequentaria o CAPS às sexta-feira. Inicialmente, mesmo estimulado pela residente a participar das oficinas do dia, João recusava e permanecia a maior parte do tempo dormindo no sofá. No almoço, era necessário que a residente fosse até a cozinha com ele e esquentasse sua comida. A essa altura, ele só colocava os segundos no micro-ondas, segundo orientação. Almoçava sozinho e só saia do refeitório quando chamado.Destaca-se aqui a compreensão de vínculo como um componente operacional que considera as necessidades de saúde dos usuários, propiciado pela convivência contínua e com potencial para a resolução dos problemas e manutenção da saúde dos indivíduos (Ministério da Saúde, 1997).O vínculo carrega em si um potencial terapêutico ao passo que constrói relações de afetividade e confiança entre os usuários e trabalhadores(Ministério da Saúde, 2011).A aposta realizada na continuidade da aproximação e o respeito ao seu tempo, produziu discretas mudanças: João estava menos rígido. A presença no serviço nos espaços de convivência também despertou interesse: João prestava mais atenção ao redor. Nesse sentido, a convivência tornou-se promotora de encontros: ainda sem responder, João era abordado por outros usuários que tentavam iniciar conversas e o acompanhavam em seus silêncios. Aresidente passou a levá-lo para a oficina de arte e jardinagem, onde permaneceu observando em silêncio. Movimentos eram também evidentes no almoço: João passou a colocar sozinho a comida no microondas e levar seu prato ao refeitório, conquistando maior autonomia. Foi percebida pela equipe a presença do pai em horários que não foram combinados no PTS, assumindo algumas funções e respondendo por João. Esta presença foi avaliada como um reforço do movimento pré estabelecido no ambiente da casa. Em atendimento familiar, seu pai conseguiu dizer da dificuldade de ver o filho dependente, justificando, assim, as suas iniciativas. Ao invés de interdita-lo, reafirmando espaços de poder institucionais, ele foi escutado e acolhido em suas angustias, abrindo margens para a partilha da vida real. A confiança estabelecida permitiu que o pai de João pudesse contar que em casa ele seguia ordenando e acompanhando da mesma forma suas atividades colocando-o, inclusive, para ver filmes o dia inteiro, sem questionar seus desejos. Conversou-se sobre a validação das sutis transformações e pequenas conquistas de João, destacando-se a importância de acompanha-lo ao seu tempo.Neste processo, modifica-se equipe, João e família ao passo que o reconhecimento como interlocutores válidos autorizou o compartilhamento de questões que não estavam na cena, contribuindo para a construção de parcerias e auxiliando a construção de outras relações possíveis dentro e fora do CAPS. Nessa mesma direção, o vínculo estabelecido entre João-equipe-usuários-família proporcionou outros espaços de encontros, sejam pelas trocas na convivência, seja pela entrada em atividades coletivas propostas pelo serviço. Sobre as últimas, ficou evidente que apenas conduzi-lo para certas oficinas não produzia desdobramentos, uma vez que era a reprodução de um movimento de invalidação e ordenamento do que deveria ou não ser feito por ele. Assim, foi conversado com o usuário sobre não estar nesses espaços se eles não fizessem sentido. Eis que, pela primeira vez, João se retirou de uma oficina, indicando certo desalinho à atividade realizada. Este movimento foi compreendido como uma retomada de João de seus desejos, sendo avaliado como uma convocação ao autogoverno, que traz consigo seus valores e histórias (Merhy, 2009). Outros espaços foram sendo introduzidos e, desta vez, investidos também por João. Não é apenas João que adere ao PTS, mas ocorre, ¨adesão da equipe ao projeto do outro¨ (Seixas, 2019). Aos poucos, voltou a rir e a falar em casa, até que, certa vez, abordou a referência perguntando: ¨Você quer ouvir a minha voz? Este lugar é feio¨. Então a técnica sugere: ¨Vamos fazer algo com isso¨. A partir desta atividade, João passou a intervir artisticamente no espaço do CAPS, trazendo sua arte para as paredes da instituição, que acolheu suas intervenções. Destaca-se a oficina de grafite que produziu sentidos e possibilitou experiências que interromperam o ciclo de repetição e embotamento. Ao passo que a equipe entra na vida de João, ele também entra na vida do serviço. Nesse processo, inicia-se a reocupação do mundo: os muros institucionais foram extravasados e João passou a frequentar uma oficina de artes visuais em um Centro de Convivência, A longitudinalidade da relação de vínculo atuou como elemento fundamental para a produção do cuidado, agenciando também enfrentamentos à psiquiatria tradicional e ao saber estabelecido nos livros. João, que tinha indicação de ECT,foi acolhido e reconhecido em totalidade e em seu tempo. O vínculo, enquanto concepção ético-política, abre margem ao não saber, que constrói simetria e desloca o usuário para o lugar de interlocutor válido da própria existência (Seixas, 2019). Vincular diz ao campo do visível, mas também ao interrogar, ao escutar (até os silêncios), ao pesquisar, ao penetrar, ao interferir e se deixar interferir nos/pelos movimentos.João nos ensina que é preciso investir na disponibilidade e na relação para que a confiança necessária para o cuidado seja construída. Ao invés de enfrentar seu silencio, obrigando-o à adequação, decidiu-se pela espera e pelo respeito ao seu tempo; pela escuta e pela acolhida de seus desejos. A parceria estabelecida, a confiança e o vínculo autorizou a entrada em vida agenciando, mutuamente, a produção do cuidado.

[1] Nome fictício para preservar a identidade do usuário.