Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
Tamanho da fonte: 
PERDER O MEDO, RE-HABITAR A CIDADE
Tulíola Almeida de Souza Lima

Última alteração: 2022-02-10

Resumo


Este trabalho deriva de uma pesquisa de doutorado que teve como tema central a relação das famílias com equipes que atuam na rede de saúde mental de Belo Horizonte. O foco de análise volta-se para algumas possibilidades de intervenção enredadas nas ações de um determinado serviço: um centro de convivência, equipamento da rede de saúde mental que utiliza estratégias artísticas e culturais para a (re)inserção social de pessoas em situação de sofrimento mental. A pesquisa contou com a participação de familiares e equipes. Foi realizada cartografia, como metodologia de pesquisa intervenção, sendo possível rastrear modos de ampliação de relações sociais de pessoas em acompanhamento na rede; sejam relações comunitárias, ou em atividades de cultura, arte e lazer, ou profissionais, entre outras. Através de registros em diário de bordo, imersão em atividades no campo e acompanhamento dos processos existentes no serviço, bem como a realização de entrevistas coletivas, a pesquisa resultou em escrita de análise construída de modo co-participativo.

Com o objetivo de destacar linhas duras e flexíveis nas relações, foi possível sinalizar modos de construção coletiva de cuidados na saúde mental. Como os atores envolvidos se apresentam como ligados ao campo da luta antimanicomial, os modos de relação entre equipes e familiares implicam em revisão do exercício de poder ao qual usuários são submetidos, enquanto alvo de ações orientadas pelo saber psiquiátrico ocidental hegemônico; e ainda como familiares podem também contribuir para lógica de tutela e segregação, na cadeia de poder e saber que pretende tornar a loucura objeto de intervenção privilegiada de especialistas. A abertura para análises coletivas, revisão de posturas e reconhecimento de linhas institucionais permite mudanças no modelo hegemônico de lida com o sofrimento mental e pode contribuir para maior contratualização social dos indivíduos e ganhos para o modelo antimanicomial.

São múltiplos os cruzamentos entre as formas de enunciados sobre os modos de lidar com situações e pessoas em sofrimento mental. Certas linhas duras são tecidas nessas relações, compondo um plano de organização do cuidado em saúde mental, instituído que circula e nos endurece, nos coloca para reproduzir, nos afastando e afastando usuários e familiares de sua potência. Diante do modo como são operacionalizadas as políticas públicas de saúde, seus agentes muitas vezes propõem certa normatização de conduta a partir do que consideram como esperado sobre o modo de viver de grupos populacionais.

Experiências de protagonismo de familiares foram relatadas pelos participantes, que evidenciam ganhos obtidos para melhoria de vida de usuários (as) acompanhados (as) na rede. Algumas mudanças observadas por eles próprios referem-se a reposicionamentos subjetivos e aprendizados na convivência com pessoas em situação de sofrimento. Familiares que reconhecem alteração em práticas de cuidado que passavam por controle de comportamentos; que reconstroem as memórias de como viviam antes dos serviços públicos e de acesso facilitado, territorializados; que percebem como em cada sujeito que sofre há dimensões outras para além das fragilidades que possam enfrentar na condição de sofrimento.

As famílias são mediadoras entre o indivíduo e a sociedade e referência de grupo e coletividade para cada um (a) de nós. Estes grupos sofrem com os transtornos de seus membros e vêem-se frequentemente sem condições de mudar positivamente a relação com os mesmos, o que caracteriza alguns dos impasses que emergem hoje no domínio da saúde mental. Sentimentos de medo e insegurança na lida e convivência com a loucura acabam sendo fortalecidos, o que leva à menor circulação das pessoas em seus espaços de vida e a relações pouco flexíveis entre elas.

“A gente venceu o medo de soltar a pessoa”

Assim se referiu o irmão de um usuário frequentador do centro de convivência, em entrevista coletiva na pesquisa que originou este trabalho. Alguém que participa de inúmeras atividades e oficinas propostas pelo serviço e que tem superado dificuldades pessoais ao longo dos anos de acompanhamento. Entre as ações há participação em grupo de música com expressiva consolidação no campo da militância cultural, através de performances, entrevistas, composições e interpretações musicais. São construídas, assim, outras formas de habitar a cidade.

Dispositivos de grupo podem ter efeitos distintos, ao propiciarem cruzamentos de linhas distintas, ligadas a formas de saber, poder e subjetivação. Promovem possibilidades de agenciamento de afetos, discursos e desejos, na aposta de produção de subjetividades mobilizadas por tais encontros. Mobilizações que levam à criação de enunciações coletivas. Nesta perspectiva, a família torna-se um território no qual podemos agir visando produzir saúde, através da realização de parcerias e de agenciamento de desejo ao longo dos processos de reabilitação psicossocial que acompanhamos.

Se em meio às linhas duras coexistem linhas flexíveis que podem se transformar em linhas de fuga, novas composições podem advir entre famílias e serviços. E à medida que as famílias perdem o medo de soltar a pessoa, esta também perde o medo de arriscar-se em outros trajetos terapêuticos e de vida, em um movimento de consequências imprevistas para as partes envolvidas. Mudanças na lógica assistencial podem ser percebidas nessas interações, em um processo de aprendizado permanente.

Em conversas e encontros improvisamos caracterizações a respeito de familiares que frequentam a rede e o serviço e sobre as diferentes formas de cuidado entre as famílias. Há distintas considerações sobre os modelos e saberes de familiares a respeito da convivência com outras pessoas em situação de sofrimento mental, em contraposição ao que é definido pela ciência dominante, através de práticas homogeneizadoras e encarnadas nos discursos estabelecidos. Conjugações que podem ser efetivas para recolocar a função da psiquiatria e de formas de controle sobre as pessoas.

É importante pensarmos nas formas de construção das identidades - tanto individuais quanto coletivas - para analisarmos respostas sociais construídas a partir de monismos ou a partir de pluralidades, as quais levam a determinados arranjos de organização comunitária. São aspectos que se relacionam às condições de vida e aos recursos de um povo para viver em comunidade e com dignidade, de onde se podem tirar estratégias de enfrentamento a situações que levem ao sofrimento mental.

As relações das famílias com os técnicos de referência de seus membros afetados por situações de sofrimento mental variam conforme a natureza das instituições de tratamento e dos processos de trabalho existentes. As famílias são parte importante na reinserção sócio-afetiva de pessoas em situação de sofrimento mental. Muitas delas reconhecem a importância da desinstitucionalização e agem como parceiras nas iniciativas de reabilitação psicossocial.

Muitos exemplos de intervenções concretas com famílias e usuários se configuram como experiências para caminhos possíveis de desconstrução do poder. Os êxitos nos acompanhamentos parecem estar relacionados a uma não normatização de modelos familiares e não prevalência de julgamentos sobre as formas de cuidado dos membros familiares entre si. Sendo nossas subjetividades ferramentas para nossa lida na saúde mental, convém criarmos condições de analisarmos nossas expectativas, enquanto trabalhadores e operadores da política, a respeito das condutas que ofertamos e das nossas interações com grupos de características diferentes. Algo que aprendemos enquanto experimentamos, indo e voltando nos movimentos pela assistência. Fiéis à nossa história e à nossa memória de lutas.

E vamos recriando realidades, nos utilizando de dispositivos tais como os centros de convivência, para irmos nos refazendo, coletivamente, seguindo o fluxo da vida e buscando múltiplas conexões entre saúde, arte e cultura.