Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O avanço do conservadorismo no campo da saúde mental e drogas e as comunidades terapêuticas no estado do Rio de Janeiro: uma análise do PL no 565/2019
Tiago Braga do Espirito Santo, Rachel Gouvea Passos, Tathiane Meyre da Silva Gomes

Última alteração: 2022-02-25

Resumo


O presente artigo problematiza o avanço conservador no campo da saúde mental e drogas, tendo como uma de suas expressões o espraiamento das comunidades terapêuticas que avançam no cenário político e seguem disputando o financiamento e o direcionamento das políticas de saúde mental e drogas. Objetiva-se analisar o Projeto de Lei no565/2019 como fenômeno político que expressa a capitulação de forças em torno do projeto de fortalecimento das comunidades terapêuticas no interior da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no estado do Rio de Janeiro. O referido PL foi criado na Alerj em 20 de maio de 2019, em caráter de tramitação ordinária (ALERJ, 2019). Sua votação em plenária ocorreu no dia 25 de maio de 2021, após a publicação no DOERJ de um pedido do autor do projeto para a votação em urgência, sustentado pela argumentação prevista pelo Regimento Interno da Alerj, art. 127, a saber: “a abreviação do processo legislativo em virtude de interesse público relevante” (ALERJ, 2015, n. p.). Os objetivos do PL são: regulamentar as ações das CTs, tornando-as política pública permanente com prioridade de financiamento, implementando no estado do Rio de Janeiro diretrizes para a atuação e acolhimento de “dependentes químicos”, desenvolvendo “ações, atividades de prevenção, tratamento, recuperação e reinserção social”. Trata-se, portanto, de uma estratégia de completa recondução da Rede de Atenção Psicossocial e da condução da gestão política da reforma psiquiátrica brasileira na direção de cristalizar os moldes manicomiais. Nesse sentido, o referido PL, enquanto expressão fenomênica, entra no bojo da larga ofensiva burguesa – resposta às contradições e crises do atual estágio de desenvolvimento capitalista que se agudizam e demonstram o esgotamento de sua capacidade civilizatória (MÉSZAROS, 2009; 2011) –, na qual se identificam elementos na dinâmica conjuntural que remetem à processualidade de um avanço conservador que “supõe sua inserção no processo histórico movido por um conjunto de determinações estruturais e conjunturais, atores econômicos, político-culturais e pela dinâmica da luta de classes” (BARROCO, 2011, p. 624). Ao afirmar a criação do programa de atuação e acolhimento das comunidades terapêuticas como políticas públicas permanentes no estado do Rio de Janeiro o PL se apresenta como expressão máxima deste retrocesso político ao determinar que as CTs assumissem um lugar de política de Estado, e não apenas de governo. Isso implica uma transição das CTs, que passam de instituições filantrópicas para instituições com respaldo do Estado e com financiamento garantido pelo plano plurianual. O PL empenha-se, portanto, em mudar a limitação imposta pela Resolução no 01/2015 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça, que explicita que as CTs não são estabelecimentos de saúde, definindo-as como locais de apoio e interesse das políticas públicas, não podendo, desta forma, serem classificados como políticas públicas (ALERJ, 2015). A religiosidade se apresenta no projeto como “propostas e formas de atendimento terapêutico” que “variam de acordo com a visão de mundo e perspectiva política, ideológica e religiosa dos diferentes grupos e instituições, governamentais e não governamentais, atuantes nesta área”. Em outro trecho, advoga-se pela “independente de etnia, credo religioso, ideologia, nacionalidade, orientação sexual, antecedentes criminais ou situação financeira”. Destaca-se que o “desenvolvimento da espiritualidade” está inserido no documento como “atividades terapêuticas” a serem desenvolvidas pelas instituições (ALERJ, 2019). Contudo, não existem subsídios para a compreensão de como estas intervenções serão realizadas de modo que contemple as múltiplas expressões da religiosidade e da fé, nem uma justificativa científica para a sua inserção como instrumentos para o cuidado realizado junto aos usuários de substâncias. Esta questão apresenta particular gravidade quando se consideram os estudos que permitem traçar um perfil de algumas CTs, demonstrando a hegemonia do alinhamento ideológico religioso neopentecostal e indicando que estas práticas religiosas compõem o método de trabalho nas instituições (SCHLEMPER JR., 2017; IPEA, 2017; CFP, 2018). O atual cenário é demarcado pelo avanço e hegemonia de um conservadorismo que, em sua face contemporânea, tem no fundamentalismo religioso um dos seus elementos constitutivos centrais. Depreende-se deste cenário a predominância da razão instrumental, própria da pseudo-objetividade irracionalista, terreno fértil para o avanço ou fortalecimento de ideias religiosas ou de senso comum, inclusive em detrimento da razão e da ciência. Constitui-se numa determinação fundamental para a compreensão, por um lado, da expansão da vertente evangélica neopentecostal e, por outro, da aderência social do projeto das comunidades terapêuticas que se particularizará no Brasil sob forte influência do neopentecostalismo[1]. Desse modo, a despeito da separação republicana entre Estado e religião, ainda há manutenção da forte crença popular na mítica religiosa e seus rituais de cura diversos como esfera de resolução dos problemas da vida cotidiana (VASCONCELOS; LIMA, 2019). Por outro lado, isto se associa às inúmeras barreiras que a população tem encontrado para acessar o conjunto de políticas sociais, sucateadas e subfinanciadas num quadro geral de precarização e vilipêndio das políticas públicas. Além disso, as igrejas evangélicas têm demonstrado eficácia ao dotarem de novos significados religiosos as diversas mazelas da vida (MARIANO, 1999), e expressões da questão social parecem ser uma chave analítica importante no fenômeno de expansão das CTs a ser melhor investigado. O cenário atual no país demonstra as contradições do capitalismo sob as particularidades da dependência, sendo marcado no tempo presente pela forte onda conservadora (DEMIER; HOEVELLER, 2016) que confere sustentação a um governo de extrema direita e negacionista, cujo modus operandi fascista explicita seu irracionalismo mais profundo. Portanto, há no país “uma forte tendência moral-punitiva, onde as expressões da questão social voltam a ser tratadas como casos de polícia e tem expropriado de seu conteúdo a articulação com seus determinantes socioeconômicos” (PASSOS; GOMES, 2019). Acrescenta-se ainda, como expressões distintivas desta conjuntura, a intolerância e o fundamentalismo religioso. A observação dos elementos dinâmicos conjunturais do tempo presente, marcado pelo desemprego e pelas formas de precarização e perda de direitos que denotam o vilipêndio do trabalho (ANTUNES, 2021), pela fome, pelo recrudescimento da violência – especialmente sobre a população pobre e negra – e pelo pandemicídio, demonstra que, sob esta conjuntura, o processo de reprodução ampliada do capital se agudiza e se torna ainda mais violento. Impacta ainda mais, objetiva e subjetivamente, a vida de trabalhadores e trabalhadoras, comprometendo seus laços de solidariedade de classe. A isso se somam processos de capitulação de outras formas de solidariedade e apoio social individualizadas, a exemplo do movimento neopentecostal. No particular do campo da saúde mental e drogas, apesar de as forças conservadoras seguirem unificadas para gerirem a política de saúde mental, álcool e outras drogas, tornam-se fundamentais investigações que busquem compreender o modo como o conservadorismo religioso do “combate às drogas” ganhou impulso na conjuntura política. Nesse sentido, problematiza-se o avanço das CTs, no âmbito do estado do Rio de Janeiro, expresso pelo PL no 565/2019 como fenômeno político que demonstra a capitulação de forças em torno do projeto de fortalecimento destas instituições no interior da RAPS.


[1] Não se desconhece a complexidade e heterogeneidade denominacional da vertente neopentecostal, tampouco se reduz os fatores de expansão desta expressão religiosa no país ao avanço conservador. A esse respeito sugere-se a leitura de Mariano (1999).