Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2022-02-14
Resumo
A atenção básica possui a finalidade de ser o primeiro contato da comunidade aos serviços de saúde oferecidos pelo Estado além de ser responsável pelo cuidado integral e contínuo da população dentro de um território. Na conjuntura pandêmica, apesar de estarem sendo considerados “heróis” pelo enfrentamento diário contra o vírus da Covid-19, os profissionais da saúde da atenção básica exercem muitas vezes suas atividades em condições insalubres tanto para um contexto pandêmico quanto para dias “normais”, o que acarreta constantes sofrimentos e produz o questionamento de como esses servidores mantêm-se trabalhando. Dessa forma, a partir de um olhar clínico, a Psicodinâmica do Trabalho se dedica a relacionar as mobilizações subjetivas do sujeito diante do sofrimento e o prazer no trabalho, com os modos que a organização do trabalho possibilita que ele exerça suas atividades de forma eficaz e digna. Por seu viés metodológico, a Psicodinâmica do Trabalho fornece espaços coletivos de escuta aos trabalhadores, de modo que, por meio dessas oportunidades, eles tenham a exposição coletiva do real do trabalho, o que facilita a elaboração dos prazeres e sofrimentos acarretados pelo cotidiano no trabalho. Ainda nessa perspectiva, a teoria de Dejours entende que ainda que sofram diante dos conflitos entre o que há prescrito como trabalho, e o que realmente acontece no dia a dia, os trabalhadores conseguem estabelecer certo controle da realidade, de modo a modificá-la tanto para continuar trabalhando, quanto para sofrer menos, e, além disso, obter o reconhecimento de seu serviço. Esse controle da realidade é entendido como os mecanismos individuais e as estratégias coletivas de defesa, sem os quais, dificilmente o serviço continuaria a ser feito mesmo diante de tantas violências éticas, físicas e psicológicas presentes no dia a dia desses profissionais. Com base no exposto, a presente a pesquisa objetivou analisar a organização e as condições de trabalho de profissionais da Atenção Básica do Pará, durante a pandemia de Covid-19, evidenciando suas vivências de sofrimento e prazer no decorrer desse período. Com esse fim, foram realizadas entrevistas semiestruturadas individualizadas com 2 trabalhadores, sendo um profissional de Medicina e uma técnica de Enfermagem, através da plataforma virtual Zoom Meeting, que fornece um encontro síncrono online entre entrevistador e entrevistado. Houveram essas adaptações metodológicas da entrevista coletiva à individual e da entrevista presencial à virtual em consequência do necessário isolamento social imposto pela pandemia, sem o qual a saúde dos envolvidos seria ainda mais exposta riscos de contaminação viral. Os profissionais atuavam em cidades diferentes do Pará, um na capital Belém e a outra em cidade interiorana, além de ambos atuarem em equipes de saúde da família. O material fruto das entrevistas foi analisado pela equipe de pesquisa por meio da técnica de Análise de Núcleo de Sentidos (ANS). A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará por meio do parecer de número 4.011.027. Os depoimentos obtidos indicaram que o trabalho real dos servidores ultrapassa o que está prescrito como sua função, uma vez que trabalhando eles entram em contato com interferências políticas, sobrecarga de trabalho, a pandemia de Covid-19, os assédios sexuais e morais, além de contratos de trabalho temporários, ou seja, sujeitos a demissão a qualquer momento. Seus discursos evidenciaram o cansaço físico e mental proporcionado por uma organização do trabalho muito pouco flexível, a qual exige produção, mas que proporciona poucas condições de trabalho, sendo essas muitas vezes de baixa qualidade. Tem-se como exemplo, por parte de uma das prefeituras, a distribuição de máscaras de TNT para o atendimento presencial de pacientes suspeitos de covid, o que implicava em intenso receio de contaminação por parte dos profissionais de saúde, que poderiam levar o vírus para seus familiares. Os profissionais também relataram a frágil rede de apoio que possuíam, tanto à saúde física e psicológica dos servidores, posta a falta de um serviço público elaborado para atender as demandas deles, quanto para oferecer um serviço integralizado com outras instituições, tais como Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Centro de Assistência Psicossocial (CAPS), hospitais e delegacias, tal como se propõe a prescrição dos serviços de saúde brasileiros. O trabalho desses servidores, ainda que essencial à sociedade, foi identificado como fonte de intensas vivências de sofrimento. Ademais, o prazer no trabalho também pode ser encontrado, apesar de não ser tão presente quanto o sofrimento, pois tanto o médico quanto a técnica de enfermagem evidenciam que o trabalho em equipe e a convivência com os colegas de trabalho proporciona episódios de prazer, uma vez que ao trabalhar em equipe, esses conseguem dividir entre si as responsabilidades, organizarem-se coletivamente para solucionar questões do serviço, mobilizar-se contra decisões da organização do trabalho que eles consideram equivocadas e, por fim, sentirem seu trabalho reconhecido por seus pares, o que fundamenta um sentido para continuar trabalhando. Ainda sobre o reconhecimento e vivências de prazer no trabalho, os dois servidores expuseram o reconhecimento por parte da comunidade atendida como uma das principais fontes de prazer no serviço, pois a partir disso eles sentem que realmente estão contribuindo à saúde dos usuários e ao sistema de saúde brasileiro. O reconhecimento é entendido como um grande escudo para a saúde mental, devido seu caráter valorativo. Enquanto consequências da pesquisa, foi notório que os servidores se sentiram valorizados e elogiaram a escuta oferecida pelos pesquisadores, uma vez que se sentiram amparados para expor com sigilo seus sofrimentos e elaborar as vivências do trabalho, inclusive produzindo ânimo para continuar a trabalhar no serviço de saúde público brasileiro. Portanto, para atenuar as problemáticas expostas, propõe-se que os gestores e gestoras dos serviços de saúde realizem maiores investimentos nas condições de trabalho dos servidores, como, por exemplo, a distribuição perene e adaptável às circunstâncias de Equipamentos de Proteção Individual (EPI’S) e investimentos substanciais nas estruturas físicas das unidades de saúde, as quais estão em estado de precariedade e com ambientes muitas vezes insalubres para o atendimento em saúde. Já no âmbito do atendimento ao trabalhador, sugere-se a implementação de programas de apoio psicoemocional que ofereçam espaços de escuta dos sofrimentos dos trabalhadores, de modo que esses sintam-se cuidados, acolhidos e valorizados pelo sistema de saúde do qual eles fazem parte, assim como a adoção de estratégias que visem mitigar as influências político-partidárias na gestão da Atenção Básica.