Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Consultório Familiar: atenção e formação em saúde integradas e em rede
Lorrainy da Cruz Solano, Ricardo Burg Ceccim, Andrea Taborda Ribas da Cunha, Tammy Rodrigues, Larizza Souza Queiroz

Última alteração: 2022-02-09

Resumo


O Consultório Familiar consiste em um ambulatório integrado de pesquisa-formação-intervenção, voltado às questões do planejamento familiar, que abrangem da saúde sexual e reprodutiva independentemente da vontade de ter ou não filhos, biologicamente próprios ou não, à maternidade e paternidade, envolvendo aspectos culturais e sanitários relativos à diversidade sexual e de gênero. Abrange as necessidades de educação e informação em sexualidade, masculinidades e feminilidades para adolescentes, pessoas do segmento LGBT+, casais e famílias. A atenção organizada com abordagem interprofissional abrange práticas integrativas e populares de cuidado, educação em saúde, pré-natal individual e coletivo, puericultura individual e coletiva, atendimento clínico e formação profissional em serviço, além de apoio matricial em saúde sexual e reprodutiva. Os consultórios familiares foram criados na Itália nos anos 1970 no bojo das lutas feministas pelo acesso integral aos métodos contraceptivos e ambiente protegido para a livre discussão da saúde sexual e reprodutiva, questões de gênero, diversidade sexual e violência doméstica. O processo de criação e desenvolvimento do ambulatório aconteceu mediante diversos encontros da equipe brasileira e as equipes italianas para fundamentar a organização do serviço, gerando um intercâmbio importante para o município e as instituições envolvidas.

Objetiva-se relatar a experiência de implantação e condução do serviço integrando ensino-saúde-sociedade no município de Mossoró-RN. O serviço foi inaugurado no segundo semestre de 2020 como resultado da articulação entre Hospital Maternidade Almeida Castro, Secretaria Municipal de Saúde de Mossoró (SMS) e as Universidades Federal Rural do Semiárido (UFERSA) e do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Atuam residentes e preceptores dos programas de Residência Multiprofissional em Atenção Básica/Saúde da Família e Comunidade, de Residência Médica em Medicina de Família e Comunidade e de Residência Médica em Ginecologia e Obstetrícia. A produção de cuidado desafia à educação interprofissional e às práticas colaborativas entre as profissões que atuam no ambulatório. O compartilhamento potencializa as respostas para as necessidades que emergem, numa escuta atenta e que permite ampliar as possibilidades e transpor as fronteiras das profissões de saúde materializando a interprofissionalidade na formação em serviço.

São oito (8) categorias profissionais que compõem o quadro: assistentes sociais, enfermeiros, fisioterapeutas, médicos (de família e comunidade e gineco-obstetras), nutricionistas, odontólogos e psicólogos. A composição do fluxo assistencial tem o acolhimento como acesso principal e constitui aprendizagem fundamental, pois sem particular formação e acompanhamento pode se tornar uma consulta médica em presença de outros profissionais, acarretando constrangimento do(a) usuário(a) em se deparar com 3-4 pessoas para a primeira escuta. A oferta de consultas interprofissionais no pré-natal acontece com agendamento para casais e familiares. Esse momento é organizado de modo que a gestante e/ou gestante/pai/familiares possam compreender a evolução da gestação com altura uterina, batimentos cardiofetais, posição do bebê e informações sobre sinais e sintomas do período, estimulando o próprio registro da caderneta de pré-natal e culminando com a Grafia Gestacional Artística (também chamada Ultrassonografia Natural), ou seja, uma pintura da posição fetal na superfície da barriga da mãe, marcando o cordão umbilical, o sexo do bebê, as cores do enxoval e os símbolos importantes da gravidez. A pintura é um momento emocionante que integra a equipe com a gestante e acompanhantes, permitindo a construção de relações, aprendizagens, afetos, habilidades e competências. Estratégias utilizadas no processo formativo para integrar os programas de residência e equipe são oficinas, entre elas, a de produção de mandalas “Olho de Deus” em que o facilitador gera ambiência acolhedora, utilizando práticas de cuidado integrativas e populares, estimula os participantes a criarem suas mandalas simbolizando entrelaces do trabalho colaborativo e afetivo.

Tais ações oportunizam aprendizagens que mestiçam as profissões, criando um eixo interprofissional fundamental para ampliar a capacidade de produção de respostas para o cuidado individual e coletivo. O Consultório Familiar não pretende substituir os serviços da Atenção Básica, mas ser apoio matricial para a rede semeando outras abordagens de cuidado e processos de trabalho articulados com os territórios. A pandemia da covid-19 não permitiu que fossem inseridos alunos de graduação e profissionais da rede local de saúde pelo dimensionamento necessário para garantir a biossegurança. Deve-se ressaltar, contudo, a participação dos movimentos sociais e organizações populares no acompanhamento do serviço por meio de reuniões remotas e visitas programadas que têm sido essenciais para diminuir as distâncias entre os atendimentos ofertados e a realidade locorregional. No intuito de agilizar o matriciamento foi produzido um aplicativo denominado Jurema App que irá conectar o serviço à rede local, possibilitando a resolução de demandas sem a necessidade de encaminhamentos, viabilizando a solução de dúvidas com exames, quadro clínico, procedimentos e prescrições. Esse dispositivo foi produzido pelo curso de Bacharelado em Ciência e Tecnologia da UFERSA e gerou vivências interprofissionais e interdisciplinares também com a área das Engenharias, ampliando a visão do processo de trabalho da saúde.

Pode-se apontar alguns desafios na implementação do Consultório Familiar: conviver com a rotatividade das equipes que atendem, o que impacta na qualidade da assistência pela descontinuidade do cuidado; driblar o processo educacional das residências onde, mesmo com o ineditismo do processo formativo oferecido, prevalece a fragmentação assistencial gerada pela formação de base na graduação e pela regulação nacional dos programas de residência; conviver com uma organização dos processos de trabalho que nem sempre articula cenários de atenção e cenários de formação, dificultando a adesão de residentes e preceptores à proposta de modelagem assistencial; reconhecer as relações entre instituições que sofrem reflexos de mudança nas trocas de gestão (secretaria de saúde e reitorias, por exemplo). A criação de um serviço que integra ensino-saúde-sociedade para atender demandas singulares de segmentos da população LGBT+, das mulheres e crianças em vulnerabilização social e dos adolescentes, garantindo a esses grupos acesso e qualidade assistencial, revela-se o maior mérito. O Consultório Familiar demonstra ser um dispositivo seminal no sistema local de ensino da saúde pela capacidade de inovar no campo assistencial, de incentivar tecnologias leves de cuidado com abordagens humanizadas e resolutivas e de nutrir efetivamente a equidade da atenção no SUS.