Associação da Rede Unida, Encontro Sudeste 2019
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2019-10-08
Resumo
A entrevista através do método biográfico com usuários do Sistema Único de Saúde para coleta de depoimentos sobre a utilização de serviços e apreensão dos mapas de cuidados produzidos tem sido importante método de investigação no campo da Saúde Coletiva. A incorporação da “voz” do usuário em pesquisas na área da Política, Planejamento e Gestão, para além do viés avaliativo, constitui ao mesmo tempo uma inovação e uma dificuldade.
Esta narrativa tem por objetivo relatar as reflexões, estranhamentos e encantamentos do pesquisador em campo, no percurso metodológico e na relação com as histórias de vida dos usuários. Nesta pesquisa, idealizou-se a realização de entrevistas em profundidade no domicílio de usuários de municípios que compõem a Região Metropolitana de Campinas que tenham utilização recente da Rede de Urgência e Emergência nas três linhas de cuidado da política: Cardiovascular, Cerebrovascular e Trauma com objetivo de apreender e compreender os mapas de cuidados produzidos. O acesso seria a partir do levantamento e indicação das Secretarias Municipais de Saúde.
A seleção apresentou significativas dificuldades. No município A, após contato com a gestora municipal de saúde e inúmeras conversas com gestores de Atenção Básica, Regulação e Internação Domiciliar, chegou-se à conclusão que não haveria condições de acesso às informações de usuários nos critérios requeridos. Algo bastante significativo foi uma equipe gestora de saúde de um município declarar não ter condições de identificar usuários que tenham tido recentes episódios de Acidente Vascular Cerebral, Infarto Agudo do Miocárdio ou Trauma.
Já no município B, foram inicialmente apresentados pela gestão municipal uma planilha com seis usuários selecionados, dois por linha de cuidado, a partir do monitoramento de leitos ocupados na sala vermelha da Unida de Pronto Atendimento. Até aí, tudo bem. A dificuldade foi o acesso do pesquisador aos usuários: telefones de contato inexistentes, errados ou de familiares e amigos, além de desinteresse em participar ou mesmo recusas. Consegui agendar apenas uma entrevista com uma senhora que teve Acidente Vascular Cerebral. Em novo contato com a Secretaria de Saúde, a gestora delegou a busca e os contatos a uma assessora de seu gabinete. Conseguiram-se então mais dois usuários: um rapaz que sofreu trauma e estava hospitalizado e uma senhora que teve Infarto Agudo do Miocárdio. A própria assessora fez os contatos, agendou e confirmou as entrevistas. As três entrevistas foram realizadas num único dia pelo entrevistador que se utilizou de transporte próprio e foram gravadas. No Hospital do município B encontramos o usuário F em um leito, hospitalizado há 90 devido a um trauma por queda e fraturas múltiplas na perna. Jovem, bastante falante, interessado em colaborar, relata sua vida em situação de rua, o acidente, os atendimentos e a necessidade de um apoio social para alta hospitalar. Permanece internado por não possuir residência e apoio familiar para os cuidados necessários para sua recuperação. Já a usuária V foi entrevistada em seu domicílio, bastante modesto, cercada de familiares que realizam seus cuidados após o Acidente Vascular Cerebral. Com alguma dificuldade de fala, relata as dificuldades da perda de autonomia para o autocuidado e para o trabalho, além das barreiras de acesso aos serviços necessários para seu acompanhamento. Os familiares complementam suas falas e estimulam suas respostas durante toda a entrevista. Há fortes relatos de desassistência. O “eu-pesquisador” então torna-se o “eu - profissional de saúde - agente político”, totalmente implicado com e no campo e intervem junto ao município para obter assistência à entrevistada. Por último, procedo à entrevista da usuária M que preferiu ser entrevistada em seu local de trabalho. Recuperada do Infarto Agudo do Miocárdio, relata estar feliz por retornar às atividades laborais e relata ótimo atendimento de urgência, apesar de não conseguir realizar o procedimento de hemodinâmica no SUS (aguardou 60 dias). Realizou em hospital privado mediante cotização e pagamento por amigos e familiares.
O município C buscou usuários em seu sistema de regulação que foram selecionados de acordo com os critérios da pesquisa pela Diretora de Especialidades mediante delegação do Gestor Municipal de Saúde. Ela mesma fez os contatos, agendou e confirmou as entrevistas que foram realizadas pelo próprio pesquisador em um único dia. A Secretaria Municipal de Saúde disponibilizou carro oficial, motorista e técnica de enfermagem para acompanhamento do pesquisador nas entrevistas. Certamente esta “entrada institucional” facilitou muito o acesso aos usuários, apesar da preocupação com um eventual viés que possa ter ocorrido na seleção e abordagem. Foram realizadas cinco entrevistas: dois usuários que tiveram Acidente Vascular Cerebral, dois usuários que tiveram Trauma e um usuário que teve Infarto Agudo do Miocárdio. Havia mais um usuário selecionado com Infarto Agudo do Miocárdio recente, mas realizou cirurgia cardíaca exatamente no dia das entrevistas. Não sei o quanto a realização da pesquisa no município pode ter interferido no processo de assistência aos usuários selecionados. Todos os cinco usuários foram entrevistados em domicílio. O primeiro foi O que teve um Acidente Vascular Cerebral isquêmico. Ao chegar à sua residência, deparei com uma situação inusitada: sua esposa relata que ele “não fala”. Como entrevistá-lo? Com muitas dúvidas quanto ao procedimento metodológico e validade, decidi realizar a entrevista com a esposa que é sua cuidadora. Relatou o episódio, o atendimento hospitalar, o cuidado domiciliar e a grande rede de apoio social que se formou entre amigos e familiares para seu cuidado. Em seguida entrevistamos o usuário A que teve Infarto Agudo do Miocárdio bem recente. Bastante disposto, aposentado, relata sua vida ativa nos esportes, que não bebe, e relaciona seu infarto ao tabagismo. Com procedimento de cateterismo agendado para poucos dias, mostra-se preocupado, mas ao mesmo tempo ansioso pelo reestabelecimento e retorno à sua vida social. Já a usuária MV, idosa, teve Acidente Vascular Cerebral hemorrágico recente e encontra-se morando com a filha, sem autonomia e com falas desconexas. Como entrevistá-la? Recorro então à filha que relata o episódio, os atendimentos e o cuidado familiar em domicílio. Apresenta como principal questão a decisão que precisou tomar sobre a não realização de procedimento cirúrgico pelos riscos envolvidos. No mesmo dia, procedi à entrevista com o usuário P: comerciante, sofreu queda e trauma com fratura durante trabalho em seu estabelecimento. Relata outros dois episódios anteriores que são endossados pela esposa. Relata os atendimentos e que precisa recuperar-se logo para cuidar de seu negócio. Finalmente entrevisto a usuária L que teve acidente doméstico e fratura no pé. Bastante tranqüila, diz que em sua idade precisa tomar mais cuidado e que tem uma boa vida com familiares e amigos.
A seguir relaciono algumas reflexões que produzi no processo e relatei em Diário de Campo:
· Os municípios apresentaram diferentes formas de acesso às informações para seleção dos entrevistados, sendo que um deles declarou não ser possível esta identificação.
· O acesso aos usuários para entrevistas é bastante difícil. Primeiro porque os contatos telefônicos ou endereços registrados em prontuários ou documentos oficiais estão em sua maioria errados. Quando se consegue contato, a maioria demonstra receio ou desinteresse em participar da pesquisa. Não Há sentidos, valores e conexões entre o trabalho de pesquisa e suas vidas e as necessidades de saúde.
· Uma abordagem institucional das Secretarias de Saúde foi facilitadora do acesso, apesar de um potencial viés que possa ter sido produzido.
· As dificuldades de fala durante as entrevistas não haviam sido consideradas pelos pesquisadores. A opção de participação de familiares foi incorporada durante o processo e representa uma reformulação do método.
· A maioria das entrevistas foi curta, no máximo 30 minutos: falas espontâneas mediante questões-chave. O pesquisador preocupou-se em “não induzir respostas”.
· As falas sobre os atendimentos de urgência expressam certo “viés de gratidão” pela atenção em situações graves de saúde. Há poucas críticas.
· Ao presenciar situações de grave desassistência e ter a dúvida, no estatuto de profissional de saúde: agir ou omitir-se? Seria ético enquanto pesquisador implicado intervir? Nestas situações, a ética que prevaleceu foi a ética humana: intervir.
· A perda de autonomia dos usuários como problema fica muito latente nas falas, principalmente a incapacidade laboral e para o autocuidado.
· A participação de familiares e amigos no cuidado é muito intensa e presente para todos os entrevistados, formando redes sociais de apoio.
· As vidas das pessoas é muito mais complexa do que qualquer modelo de rede de saúde que venhamos a construir. Os mapas de cuidado são produzidos na relação entre o processo de adoecimento, os serviços e a vida dos usuários.