Associação da Rede Unida, Encontro Sudeste 2019
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2019-10-21
Resumo
GÊNERO E RUA: O VIVENCIAR DA VIOLÊNCIA NÃO TRAVESTIDA
GENDER AND STREET: LIVING FROM UNCREVERED VIOLENCE GÉNERO Y CALLE: VIVIENDO DE LA VIOLENCIA SIN CRECER
Jonathas Justino, mestrando, DSC – UNICAMP, jjustino3450@gmail.com
Suzy Santos, redutora de danos, Consultório na Rua de Campinas. Danny Braskys, membro do grupo Identidades (Campinas).
Palavras chaves: Gênero; Rua; Transexualidade.
“Ah, se meu corpo pudesse falar. Enquanto um dia eu me olhava no espelho e não me desejava e não me via assim como sou. O quanto meu pensamento e meu desejo seriam outros. Ah, se eu pudesse ter seios grandes, o corpo perfeito. Ah se um dia eu pudesse me olhar no espelho e me ver como eu sou: uma mulher.” Suzy Santos
INTRODUÇÃO
Somos todas autoras nesta produção: vivências que permeiam a academia, o trabalho em equipamentos de saúde e enquanto usuárias do S.U.S. A rua se fez elemento convergente para o encontro das autoras, confluindo os diferentes papéis (de pesquisadora, trabalhadora e usuária) como um dispositivo que traçados pela escrita tensionam e modificam as separações institucionais.
Esta escrita que embora confeccionada a três, detém a pretensão de atingir (assim esperamos) uma infinita base de representação de experiência, sentida, vivida e sofrida pela anormalidade do desejo, que transborda nossos contornos, atravessando fronteiras. A anormalidade tão peculiar a nós e tão fruto da inquisição regulatória dos modos diferentes de existir transpõem as fogueiras que um dia queimaram mulheres em piras e se ampliam para a carbonização simbólica e segregação literal da mais distinta sorte da alteridade.
A “caça às bruxas” não cessou, modificou-se, dentro do patamar das ideias, na ordem do discurso, na captura vulgar de termos que dizem respeito aos direitos humanos de uma maneira perversa e limitada: quão perigoso é para o patriarcado, machista, racista, heteronormativo dividir voz com quem por séculos fora oprimido, trancafiado, silenciado e eliminado?
O encontrar literal dos corpos tem o campo do Consultório na Rua do município de Campinas como território. Encontro este que, também, nos remete a falas e situações de mulheres transexuais que não colocam como sendo aceitável que o conhecimento produzido
sobre a transexualidade seja produzido sem levar em conta aspectos de representatividade e participação deste segmento neste processo.
Éramos pesquisadoras e objetos - estranhávamos, misturávamos, inundávamos em nossos encontros e a transversalidade rígida institucional se despia em uma conexão distinta da relação poder-saber.
Nossos encontros foram realizados em uma pequena pensão, moradia de uma das autoras, em uma pequena sala, ora em um pequeno quarto, contendo ritmos de trocas de experiências por vezes denso, por vezes fácil, permeados por desconfortáveis silêncios e pela vívida circulação de pessoas outras que circunscreviam aquele ambiente repleto de vidas consideradas anormais. De vida, sobretudo.
As mulheres aqui ouvidas, dentre elas uma das autoras, trazem relatos sobre suas vivências dos prazeres e dissabores da vida transexual, a partir da experiência autobiográfica e do relato vivencial que se aproxima do processo de práticas de si:
Referenciado na teoria queer, nas interlocuções com dispositivos de poder, tão intensamente descritos por Michel Foucault e na representação do gênero enquanto performance, tal como descreve Butler, iremos tratar da vida transexual não enquanto categoria social simplesmente, mas enquanto um atravessamento político de subversão e resistência.
METODOLOGIA
A metodologia cartográfica, o corpo cartógrafo que se inunda da subjetividade do campo acompanhou a posição de pesquisa in-mundo. Metodologicamente, esta escrita foi realizada a fim de que os envolvidos se contaminassem uns com os outros, com interferência e influência de um objeto não isolado, mas escancarado, operando na constituição do sujeito pesquisador in mundo.
Os encontros, ocorridos em diversos locais: pensões, espaço público da rua, acompanharam a construção coletiva, gravada das conversas e a decisão mútua dos caminhos a serem tomados, levando em conta os direcionamentos investigativos da pesquisa em ato, do inesperado e do movimento insurgente.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O “regime sexual normativo” atual carrega velhos paradigmas, mas se atualiza, dentro de um viés capitalístico, produzindo a diversidade monetariamente abastada literalmente em um nicho de mercado. Em discursos marcados pela categoria de divisão de classes abre
espaço para discussões polêmicas: “transexual rica, branca, como detentora de menor dificuldade”, talvez crie abertura para uma leitura equivocada e reducionista da vida com base no capital e na etnia, todavia, o regime de controle dos corpos, inclusive no que se refere a gênero se situa em um contexto de clara divisão de classes e desigualdades sociais extremas. Como separar o gênero desta analítica de poder? Quão distinto e melhor aceito pelo capital, pelo viés econômico é a dicotomia entre: “gays ricos e bichas pobres”, “travestis e transexuais”?
A palavra, o discurso forma e deforma os corpos, trazendo o gênero, já sujeitado, já interditado a uma nova forma de aprisionamento, capitalmente aceito, porém inserido em elementos conservadores e progressistas que não podem ser compreendidos sem identificar a lógica que lhes estrutura.
Aspectos importantes reproduzidos e consolidados pelas instituições que nos cercam entrelaçam estas vidas e as marcam, especialmente por dois aspectos fundamentais: a seletividade penal e a prostituição compulsória, frutos da materialidade da abjeção dos corpos.
Historicamente, o universo prisional tem sido associado à regulação de corpos e produção de subjetividades docilizadas. Essa compreensão faz parte de um debate mais amplo, muito impactado pelas ideias de Foucault a respeito das diferentes concepções sobre o desvio e a pena. Nas palavras do autor é preciso desfazer-se, antes de tudo, da ilusão de que a pena seja, principalmente (e não exclusivamente), um modo de repressão dos delitos.
Outra questão significativa, que atravessa o corpo transexual, é a conotação das mulheres trans em vidas essencialmente sexualizadas, culminando no que pode se definir como prostituição compulsória.
Atividades da vida cotidiana, comuns a todos, que culminam em certo trânsito pelo espaço público são representadas pelo “olhar do outro” que traçam previamente seu destino: a prostituição. Não escrevemos sobre este fato tentando relacionar a prostituição como algo destrutivo ao corpo, afinal, as putas não precisam ser salvas. Contudo, representar a vida trans essencialmente análoga ao corpo sexualizado, esse sim, o “nó da questão”.
Percebe-se que as mulheres transexuais encontram-se em uma zona inabitada – não pertencem à família, não pertencem a serviços de acolhimento que atendam mulheres ou homens – fazem emergir uma demarcação não inteligível, disfuncional, inumano - rompem com a heteronormatividade e são abraçadas pelo estigma, visto que ao se pensar em travestis e na transexualidade se constrói uma ideia de desordem, em que o duplo desvio sexual, moralmente inaceitável (transexualidade e prostituição), aparece conectado à pobreza e à criminalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As considerações elaboradas não são finais e nem poderiam ser. A vida literal, vívida e vivida, inscreve nos peitos de silicone industrial destas mulheres a letra “T”, tingida pelo vermelho escarlate, com significância de anormalidade e não inteligibilidade do gênero trans, operadas pelo discurso e difusamente capilarizada nos entremeios do poder.
Já não nos encontramos no século XVII, mas Hester Prynn (em a Letra Escarlate) se multiplica em meados de 2020 nos corpos abjetos, fornecendo abertura a uma sorte de violações. O puritanismo alcança aliados em cadeia global e a letra escarlate é pintada não somente nas vestes de quem se “aponta”. O tingimento rubro-estigma se amplia por cenários construídos em tecnologias virtuais, de governo, judiciais, religiosas e midiáticas.
O gênero, termo deveras disputado pelos regimes de verdade, inunda o imaginário social e faz com que se “queime a bruxa” Judith Butler em praça pública. O controle dos corpos pelo binarismo generificado define a transexualidade através de categorias estigmatizantes e segregatórias, se apega às práticas divisoras e divide daltonicamente o mundo entre “azul e rosa”. Nos limitam à condição de macho e fêmea, inclusive, a partir de circunscrições que não conseguem contornar as linhas da vida que, assumindo outras formas, simplesmente vaza às normativas.
O corpo transexual, se ouvido, diria que a zona inumana estabelecida a ele como habitat natural não é uma zona segura. Diria que neste corpo existe resiliência, plenitude, dificuldades, práticas coletivas de cuidado e que ele não nasceu para fins sexuais, de chacota ou para preenchimento de vagas em sistemas prisionais. Este corpo esperaria que estas linhas escritas tivessem o formato de multidão, que este corpo, tão interditado se tornasse indomável frente à soberania que o reprime, o esconde e o elimina. Esperaria que o amplo social não o deixasse viver, fazendo-o morrer.
Esperaria, por fim, que as Rayanes, as Negalus, as Suzys, as Samaras, as Mels, as Linaês, as Dannys, as Dudas, as Sabrinas, as Michellys, as Luanas, as Janas, as Letícias, as Rubis, as Raphaellas e todos os outros nomes sociais eleitos se referissem a vidas incondicionalmente respeitadas e consideradas dignas de serem vividas. Que as letras escarlates que os marcassem não fossem definidas pelo dedo de quem apontasse, mas pela subversão do próprio corpo apontado. Que fossem análogas à resistência.