Associação da Rede Unida, Encontro Sudeste 2019

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Pré-Natal de Mulheres em Situação de Rua e/ou Uso Abusivo de Substância Psicoativa: Experiência do Consultório na Rua de Campinas
Thais Machado Dias

Última alteração: 2019-10-22

Resumo


Esse material foi o que motivou e compôs a realização do mestrado da pesquisadora Thais Machado Dias, sob orientação do professor Sérgio Resende de Carvalho defendido em fevereiro de 2019.

Introdução

Quando se considera o uso problemático de substâncias num sentido “biomédico” comum, muitos profissionais da APS – sejam do CnaR, ou das UBSs – acabam encaminhando as mulheres gestantes em uso de substância psicoativa e ou situação de rua para os serviços de pré-natal de alto risco.

Essas mulheres que por vezes não acessam se quer UBS de seu território, ou fogem e se escondem de serviços como o CnR, em geral não se submeterão aos atendimentos e  m espaços de funcionamento tão codificados como os hospitalares, com sua série de regras e normas nos horários, filas cadastros etc. Isto dificulta, sobremaneira, o acesso aos serviços de saúde.

 

“Então eles simplesmente sabem que aquilo não é para eles, que o posto de saúde é para quem tem um mínimo de desejo de ter saúde, quem se sujeita a horários pré-determinados, que se sujeita a regras básicas de higiene – e eu não estou dizendo que isso está errado, mas que se sujeita” (p.56) (1)

 

Nesta realidade complexa, a realização de um cuidado pré-natal de qualidade constitui uma exceção. Em um contexto de alto grau de vulnerabilidade social, de fragilidade dos serviços de atenção e assistência social faz se cada mais necessário um exercício de reinvenção das práticas de cuidado.

Abordagem Metodológica

A construção do mestrado como um todo tratou-se de um exercício de “escrita de si” da autora. Ainda que seja uma escrita de si, não é feita no plano individual. Há no diário de campo um material do qual ecoam muitas vozes, de muitas mulheres, que não apenas a da autora.

A pesquisa se deu como parte de uma elaboração do que foi ser médica assistente dessas mulheres gestantes em situação de rua na Equipe do Consultório na Rua de Campinas e de dois equipamentos de CAPS AD. Nesse sentido, essa escolha metodológica se coloca como escrita e cuidado de si, e de como se colocar e se construir nesse contexto da academia e como incorporar, no corpo e no corpo desse texto, o vivido no serviço.

 

Discussão e Resultados

Sobre o uso das tecnologias duras - de maneira leve - na rua:

Iniciamos com a questão: “Do ponto de vista dos equipamentos, das tecnologias duras, o que precisamos para fazer uma consulta de pré-natal?”

Numa consulta de pré-natal comum, precisamos do estetoscópio, esfigmo, balança, fita métrica, sonar, as vezes uma fita urinária, prontuário e cartão da gestante. Já se verifica que todos esses materiais são todos facilmente transportáveis, seja dentro de uma Van ou Kombi, que em geral os serviços dispõem para atendimento domiciliar.

A coleta de exames de sangue, também pode com tranquilidade ser feita fora do espaço físico das unidades, comum na APS com pacientes acamados, que tem seus exames coletados no domicílio e transportados em frascos e caixas adequadas.

Quanto aos exames para infecções sexualmente transmissíveis, há um procedimento similar: os testes rápidos, que podem também ser realizados fora dos equipamentos de saúde, como é frequente em campanhas de testagem diagnóstica nas ruas e praças do país.

Praticamente a única tecnologia dura não transportável de um pré-natal de risco habitual seria a ultrassonografia obstétrica.

Esta composição se faz presente na experiência de Campinas, onde todas as tecnologias duras descritas acima estão no cotidiano do trabalho das equipes do CnaR e são transportadas pelos trabalhadores com ou sem o veículo que acompanha as atividades de campo. Assim, realizam-se as consultas pré-natais normalmente em espaços não convencionais, como calçadas, pontes, mocós, e mesmo em comunidades terapêuticas ou enfermarias de psiquiatria.

Interessante notar que esta descrição, aparentemente óbvia, do processo de trabalho que vivenciamos junto ao CnaR tem causado espanto e surpresa nos debates que vivemos junto ao Grupo de Trabalho Maternidades[1] com trabalhadores da APS. Uma surpresa que em geral provoca trabalhadores a refletirem sobre suas ações reconhecendo que o que impede normalmente a realização desses pré-natais nas ruas, nos territórios de vida e existenciais dessas pacientes, se relaciona muito mais às tecnologias relacionais (leves), do que às tecnologias duras, como parece haver um certo senso comum de que não seria possível realizar um pré-natal numa calçada.

Relacionado a isso nos interessa aqui realizar um segundo questionamento: “o que falta de fato para as equipes acessarem, atenderem e produzirem encontros e cuidado com essas mulheres das ruas?”

As paredes de um consultório são uma barreira protetiva dos profissionais de saúde. Muitas vezes os protegem da pressão assistencial, da demanda concreta. Os protegem do território e de suas vulnerabilidades, e também da sensação de ignorância e impotência, de não saber o que fazer.

É preciso construir um certo grau de entrega e disponibilidade interna, subjetiva para trabalhar em ambientes abertos e não convencionais. É importante enfatizar que em geral isso não está dado com a formação profissional. No território, fica-se frequentemente diante das vulnerabilidades, das nossas e dos outros, mas é apenas saindo dos consultórios das unidades de saúde e transitando pelos cenários de uso que há a maior probabilidade desse cuidado ser feito, muitas vezes é apenas assim encontramos as mulheres gestantes das quais este trabalho trata.

Profissionais quando se dispõem a sair de seus espaços protegidos, em especial os que apresentam os tais cursos “superiores”, passam em geral por uma experiência de desconstrução de sua formação profissional, que se dá nas universidades em espaços institucionalizados. Há uma desconstrução também de aspectos da sua subjetividade, conceitos e pré-conceitos. Assim como uma construção de uma outra subjetividade que possibilite encontro de cuidado diverso, mais aberto às potências do território e das pessoas.

 

“A clínica praticada em movimento, fora dos espaços de reclusão convencionais, com o que se inauguram outras formas de engate terapêutico, bem como outras possibilidades de conexão com os fluxos da cidade e da cultura. ‘estar presente em movimento’ ‘por as pessoas de pé’ desterritorializar o contexto e o setting, habitar o limite e a tensão, investir na força, eis uma reversão de hábitos clínicos consagrados” (p.12) (1)

 

É com criatividade e com tecnologias leves que as equipes de saúde redimensionam e ressignificam as tecnologias duras no cuidado a população.

Considerações Finais

Um dos principais insights de nossa pesquisa, que esperamos ter traduzido, faz referência ao fato de que provavelmente o maior risco à gestação nos desfechos maternos e fetais e tem como causa relevante a fragilidades do seguimento pré-natal.

Nesse sentido, se o maior risco se trata do não acompanhamento dessa mulher, os instrumentos mais adequados para atuar neste risco específico são: vínculo, e realização de projetos terapêuticos singulares.

Acreditamos que os “experts” com mais potências neste campo, especialistas na implementação de tecnologias e práticas de  tecnológias leves se encontram nas equipes da Atenção Prmária em Saúde, seja as UBS ou as equipes de CnR, por terem a oportunidade de realizar um acompanhamento longitudinal das linhas de cuidado que os serviços e usuários produzem, ou buscam produzir, ao constituir seus planos de cuidado.

Neste caso, trata-se da expertise em pessoas e coletivos singulares. E por essa torção, e não só pela política, que preconizamos que a equipe, e trabalhadores,  da APS, entre elas o CnR devem ser reconhecidos como uma ´nova especialidade´ que se caracteriza, ou deveria se caracterizar, por práticas de alta densidade tecnológica que tem como foco principal o componente relacional por alguns denominados de tecnologia leve. E estes sim que devem ser o espaço central de cuidado dessas mulheres e não o pré-natal de alto risco como comumente se coloca.

Referências

1.      Lancetti A. Clínica Peripatética. 10°. São Paulo-SP : Hucitec; 2016.

2.      Ferla AA, Jorge AO, Merhy EE. Separação compulsória de mães e seus filhos: quando a lei e a cidadania se confrontam. Saúde em Redes [Internet]. 2018 Aug 7 [cited 2019 Apr 28];4(1suplem):5. Available from: http://revista.redeunida.org.br/ojs/index.php/rede-unida/article/view/1822

3.      Foucault M. A Escrita de Si. In: O Que é um Autor. Lisboa: Passagens; 1992. p. 129–60.


[1] O Grupo de Trabalho Maternidades foi composto pela defensoria pública do Estado de São Paulo no ano de 2016 com profissionais da saúde assistência social e judiciário para uma roposta de discussão de casos, criação e proposição de fluxos e educação permanente da rede de saúde.